Uma Pitada de Sorte (Capítulo extra)
Este capítulo extra acompanha os acontecimentos dos capítulos 21 e 22 de Uma Pitada de Sorte narrado pelo ponto de vista da chef do Le Concorde, Julieta Valverde.
Julieta
Sexta-feira, 01 de junho de 2007
— Dois soufflé au fromage e um parfait de foie gras na mesa oito! — grita Daniel.
— Entendido — responde Sophia.
— Sophia! Preciso do ovo mollet para finalizar o prato — grito.
— Hm, indo, chef — responde, e posso perceber pela sua voz que ela está nervosa.
— Também preciso dos aspargos salteados agora! — acrescento.
Eu sei que Sophia está atrapalhada, mas não posso parar o processo por isso. Ainda mais hoje, que não estou me sentindo tão bem e, por isso, estou um pouco mais lenta.
Não posso deixar nada atrasar senão vira uma bola de neve; então, espero que Sophia dê conta.
Cozinha é pressão e todos aqui sabem disso.
— Sim, chef! — responde Sophia.
— Deixa que eu descasco o mollet — escuto Amélia falando de maneira calma com Sophia. — Termina os aspargos.
— Sim, chef — responde mais uma vez.
Hoje é o primeiro dia da Méli como sous chef e, como eu esperava, ela está se saindo muito bem. Fico feliz em ver que todos a aceitaram nesse cargo.
Tive certo receio de que alguns cozinheiros mais antigos se sentissem passados para trás por eu dar prioridade a ela. Mas todos a receberam de braços abertos, porque, além de ter se mostrado uma pessoa altamente confiável, é impossível não gostar de Amélia e do seu jeito, ao mesmo tempo, espontâneo e gentil.
Particularmente, nem sei como teria resolvido essa situação com o Maxi sem ela. Eu sabia que tinha alguma coisa acontecendo, mas jamais desconfiaria dele, que era amigo pessoal do meu pai e estava conosco há anos.
Inclusive, ontem liguei para o papai e tivemos uma conversa bastante complicada. Ele, assim como eu, não quis acreditar. Mas depois que contei o acontecido na cozinha daquele nojento do Guillermo Alcântara, ele não teve escolha. Sei que ele está com o coração partido com essa notícia, mas também sei que ele não vai tentar falar com Maxi; meu pai consideraria isso uma humilhação. Sendo assim, acho que esse capítulo da história está mesmo encerrado.
Graças a Amélia.
O que mais me surpreendeu não foi apenas ela ir atrás do Maxi e descobrir a verdade, mas todo o apoio que ela me deu depois. Méli não tinha obrigação nenhuma de investigar, muito menos de me aguentar chorando igual a uma criança. Mesmo assim, ela ficou comigo até eu garantir que estava bem e insistir que ela podia ir embora.
Eu nunca conheci alguém que se importasse tanto comigo ou com o Le Concorde.
— Aqui, chef — Amélia diz, deixando o prato de Sophia na bancada para eu finalizar.
— Obrigada, Amélia — digo, pegando o mollet. Corto ao meio e o sirvo por cima de um creme de cogumelos, que é um dos pratos favoritos da casa. — Eu disse que você daria conta. Bom trabalho acalmando a Sophia.
— Obrigada, chef — ela me responde com um sorriso que faz com que seus olhos redondinhos se fechem de leve.
***
Sábado, 02 de junho de 2007
Sinto meus olhos ardendo e minha cabeça parece pesar uma tonelada. Minha cara também deve estar péssima porque Nacho está mais uma vez na cozinha tentando me convencer a largar o trabalho e ir para casa.
— Juli, eu sei que você não se importa em pegar uma pneumonia ou seja lá o que for, mas você não acha que está ficando um pouquinho insalubre você trabalhar assim? — ele pergunta baixo para que só eu escute.
— É só um resfriado, Nacho. Minhas mãos estão higienizadas e eu não estou tossindo nem espirrando.
— Mas tá com uma cara horrível — ele acrescenta.
— Você sabe mesmo fazer uma mulher se sentir especial.
— Você é muito teimosa, boluda — ele diz. — Mas vim aqui por outro motivo; o cliente da mesa dois tá com toda pinta de crítico. Por favor, não espirra no prato dele.
Apenas assinto com a cabeça. Estamos acostumados a receber críticos e a identificá-los logo que chegam. Nesses casos, nos esforçamos sempre um pouquinho mais para ter certeza de que nenhum erro seja cometido. Mas fora isso, é apenas mais um cliente como qualquer outro.
***
Normalmente o expediente passa como um flash para mim, mas hoje parece que o tempo não passa de jeito nenhum. Sinto minha cabeça cada vez mais pesada e meus olhos cada vez mais ardidos.
Caminho até a despensa para respirar um pouco e tentar recuperar minha energia, já que ainda tenho mais de três horas pela frente. Assim que fecho a porta, roubo um morango e me encosto na estante de azeites. Fecho os olhos por um segundo e deixo minha cabeça se apoiar na prateleira.
— O que você está fazendo nesse restaurante ainda? — Amélia pergunta, entrando na despensa feito um raio.
Dou um salto com o susto que levo. Ela fecha a porta e me encara esperando uma resposta.
— Hm, o restaurante é meu e eu trabalho aqui?
— Juli! — ela exclama, abrindo os braços de maneira exasperada. — Você tá doente. Precisa descansar!
— Eu tô bem, Méli.
Amélia coloca as mãos na cintura, e tenta ser autoritária, mas ela é apenas adorável, mesmo irritada.
— Eu tô bem — repito.
Ela caminha até mim e, instintivamente dou um passo pra trás. Sinto a prateleira contra a minha lombar e Amélia para a alguns centímetros de mim. Ela leva a mão a minha testa.
— Você tá um pouco quente — ela diz com as sobrancelhas franzidas. — É isso! Você está dispensada por hoje.
— Você sabe que eu ainda sou sua chefe, né?
— Sei, mas agora eu sou a sous chef e é meu trabalho tomar as decisões quando a chef está fora de si, como agora — ela diz com certa prepotência, e não consigo evitar um sorriso.
— Que atrevida — digo. Amélia é mesmo insolente e até um pouco petulante, porém, foi a sua personalidade o que me fez simpatizar com ela de cara e querer lhe dar uma oportunidade na cozinha. — Mas, pra falar a verdade, está mesmo difícil continuar por hoje.
— Aleluia!
— Vai indo lá que eu já vou falar com a brigada, só preciso de um minuto.
— Tá bem — ela diz. — Mas vê se vai pra casa.
— Aí você já tá exigindo muito. Vou ficar no meu escritório, qualquer coisa você ou o Nacho me chamam.
— Credo, que mulher teimosa, meu Deus! — ela resmunga, mas volta à cozinha assim mesmo.
Como prometido, vou direto para minha sala e, assim que me sento no sofá de couro marrom, sinto todo meu corpo afundar. O simples fato de eu poder relaxar, faz com que todo o mal-estar, que eu estava evitando sentir, surja com força total. Por um momento, vejo tudo com bolinhas; fecho os olhos e me recosto.
Acho que Amélia tem razão, talvez eu esteja mesmo meio febril, mas sei que se eu ficar aqui quieta, logo passa.
Eu raramente fico doente, e mais raramente ainda falto ao trabalho, mas creio que o baque da traição do Maxi somado ao frio incomum para essa época do ano fez com que minha imunidade baixasse. De qualquer forma, pretendo descansar hoje e amanhã, e tenho certeza de que segunda-feira estarei renovada.
Por um momento, penso em tentar matar o tempo fazendo alguma coisa. Olho para a cópia de Jane Eyre que está na minha mesa, ainda com o bilhete de Mia dentro.
Mas só de lembrar dela e do encontro, sinto uma sensação de humilhação se somando ao meu mal-estar. Honestamente, não sei onde eu estava com a cabeça quando respondi àquele bilhete. Não é comum para mim falar com estranhos pela internet, mas quando abri o livro e me deparei com aquelas palavras, não sei explicar, achei tão delicado e fofo. Pensei que seria impossível que quem o escreveu não fosse uma boa pessoa.
E de certa forma eu estava certa.
Quanto mais falava com Mia, mais simpatizava com ela e mais excitante se tornava a ideia de conhecê-la… outra coisa que não é nem um pouco do meu feitio. Mas ela me cativou logo nos primeiros e-mails, com o bom humor e a filosofia barata que, ironicamente, serviram muito bem na minha vida naquele momento.
Eu sentia uma leveza em poder conversar com ela e saber que de alguma forma, mesmo sem saber quase nada sobre mim, suas palavras me trariam conforto.
O último e-mail, porém, não me trouxe nada disso.
Senti apenas a humilhação de colocar tantas expectativas em um encontro que não significava muita coisa para ela. Eu tentei me enganar e fingir que não foi exatamente um fora, mas semana passada quando contei para Amélia que Mia me deixou plantada, ela me olhou com tanta pena que tive certeza de que fui mesmo muito patética em me envolver emocionalmente com alguém que nem conheço.
Detestei ver Amélia me olhar daquele jeito, não só porque odeio que sintam pena de mim, mas porque não quero que Amélia me veja dessa forma. Quero que ela me olhe com respeito e admiração, da mesma forma que olho para ela… e para todos os meus funcionários, é claro.
Mas aquele olhar de pena decididamente decretou o fim da “era Mia”. Naquele momento, eu soube que não poderia me deixar levar por essa fantasia. E, ao mesmo tempo que senti como se estivesse perdendo uma pessoa importante, na pratica ela não fez tanta falta.
Sinto meu corpo tremer em um calafrio que vai dos pés à cabeça.
Nossa, está frio mesmo hoje.
Puxo a manta que cobre o sofá e me enrolo nela, mas antes me estico e aumento um pouco mais a calefação que fica a apenas um braço de distância do sofá.
***
Não vejo o tempo passar, talvez tenha pegado no sono, mas poucos minutos depois disso, Amélia abre a porta do meu escritório com uma tigela do que imagino ser sopa.
Normalmente, identificaria o que é logo pelo cheiro, mas hoje meu olfato está prejudicado.
Ela esboça um sorriso gentil ao me ver.
— Eu trouxe sopa — diz, aproximando-se. — Você vai se sentir melhor depois de comer alguma coisa.
Aceito a tigela e sinalizo para ela se sentar ao meu lado.
— Não precisava se dar ao trabalho, Méli.
— Teimosa do jeito que você é, era capaz de cair dura no chão antes de pedir ajuda — diz. — Você precisa comer e repousar, Juli. Não entendo por que você ainda está aqui.
— Não sou teimosa, sou persistente, é diferente.
Amélia revira seus olhinhos redondos e brilhantes, mas sorri.
— Isso aí tá gostoso ou o quê? — pergunta sobre a sopa.
— Tá uma delícia, foi a Sophia que fez, né?
— Êh, fui eu que fiz! — Ela me empurra de brincadeira com o ombro e eu me engasgo. — Ai, Jesus, desculpa! Você está bem?
Amélia me socorre com uns tapinhas nas costas e não consigo conter o riso, apesar de ter queimado a língua.
— Tô — respondo, limpando a boca, ainda rindo dela. — Eu sei que foi você, sua boba. Está uma delícia, obrigada!
Impressionante como a Amélia é uma dessas pessoas que traz leveza para o ambiente, não importa o que esteja acontecendo. Já me sinto melhor só de ela estar aqui.
Desde a Maria, me tornei uma pessoa bastante desconfiada, tanto no amor quanto no campo profissional, já que ela me passou a perna nos dois de uma só vez. Isso, naturalmente, tornou meu trabalho bem mais difícil. Mesmo assumindo a cozinha do meu pai com a brigada completa, sempre tive a intenção de renovar o grupo.
Entretanto, é algo mais complicado do que parece. Não poderia simplesmente mandar Francesco embora só porque eu não gostava dele sem já ter outro profissional a altura para substitui-lo. No fim, fiquei feliz de ele e Amélia brigarem como gato e rato e eu ter uma desculpa para o despedir.
Mais um ponto para a Méli.
Mas, como dizia, desde a Maria, me tornei muito desconfiada, e as entrevistas para contratação se tornaram um peso. Detesto ter que decidir se posso ou não confiar em uma pessoa dentro da minha cozinha em um entrevista de meia-hora.
No dia da entrevista da Amélia, no entanto, precisei de apenas cinco minutos para decidir que queria contratá-la, talvez por termos um desafeto em comum ou talvez porque, como comentei, ela traz leveza para qualquer ambiente.
Ela continua falando sem parar enquanto termino a sopa, mas confesso que me distraí e não prestei atenção em muita coisa.
— …aí a Sophia disse “vou chamar um táxi”, aí o Joaquim disse “a gente te leva”, aí ela disse “ah, não precisa”, aí a Lola disse “deixa de besteira, a gente te leva”, aí a Sophia concordou, aí eles foram embora e eu fui fazer a sopa… O que foi? — ela me pergunta quando me flagra encarando, tentando prender um sorriso.
— Nada — digo, apoiando a tigela na mesa lateral. — Bem detalhado.
— Pensei que você fosse querer saber tudo que aconteceu.
— Sim, sim, obrigada — digo, dando uns tapinhas no joelho dela e repousando a mão ali.
— Hm, você quer que eu dirija até sua casa? É perto do Las Heras, né? — ela pergunta e eu confirmo. — Depois eu chamo um taxi de lá, fica até mais perto.
— É? Pode ser, então — respondo, sem pensar muito. Pela cara de surpresa da Amélia, acho que ela esperava que eu fosse recusar. — Ou, em vez do táxi, você pode usar o meu carro e devolver amanhã ou depois.
***
Amélia é uma pessoa adorável e muito gentil, mas no momento está me irritando com esse excesso de zelo. Estamos caminhando lado a lado até o carro no estacionamento, e ela está acompanhando cada passo que dou, como se eu pudesse desmaiar a qualquer minuto.
— Amélia! Pelo amor de Deus!
— Tá, desculpa! — ela recua um pouco e para de me cercar. — É que você tá mesmo com uma cara péssima.
— Você e o Nacho tão firme e forte na luta para acabar com a minha autoestima.
— Não, não foi isso que eu quis dizer — ela se apressa em corrigir. — Você está sempre linda! Tipo, linda capa de revista! Mas agora tá com cara de quem está se sentindo muito mal.
Sinto minhas bochechas esquentarem.
— Hm, obrigada. Mas eu não estou tão mal, juro. É só um resfriado — garanto.
Entramos no carro e tenho a sensação de pegar no sono quase instantaneamente. Ela me acorda vez ou outra para me fazer alguma pergunta, sobre meu endereço e meu prédio e torço para ter respondido tudo certo. Estou sentindo minha mente um pouco confusa agora.
— Juli, chegamos.
Amélia me chama, afagando meus cabelos. Levo alguns segundos para entender o que está acontecendo e o cafuné torna ainda mais difícil despertar. Mas logo percebo que chegamos e me apresso em sair do carro para que ela possa ir embora. Sei que já abusei demais da sua boa vontade.
Ela também tira o cinto de segurança.
— Aonde você vai? Não ia ficar com o carro?
— Vou te levar lá em cima — ela diz, saindo do carro. — Não confio em você sozinha, vou me certificar de que você tem tudo que precisa em casa, depois eu vou.
— Essa é boa!
— Além do mais, você está doente por minha causa, então, é o mínimo que posso fazer.
— Por sua causa? — pergunto confusa, entrando no elevador.
— É! Foi depois que eu te fiz congelar na quarta-feira de madrugada que você ficou assim.
— Ah, isso? Que besteira, Méli. É claro que não é sua culpa.
É culpa daquele traidor do Maxi!
O elevador abre no terceiro andar e destranco a porta do meu apartamento.
— Bienvenue chez Julieta.
Logo percebo que a casa está uma bagunça, cheia de lenços de papel e xícaras de chá pra todo lado.
Não acredito que deixei tudo assim hoje antes de sair. Sinto certo embaraço, mas Amélia parece não se importar e logo me pergunta:
— Você quer que eu te faça um chá de limão e mel enquanto toma um banho quente? Que remédios você está tomando?
— Hm, nenhum, é só um resfriado, logo passa.
— Ou vira uma pneumonia!
— Que exagero, Amélia. Só preciso dormir um pouco e amanhã já estarei melhor — digo, tentando manter o resto de dignidade. — Mas aceito o chá que você ofereceu. Só que não tenho limão.
— Tudo bem, eu dou um jeito, vai tomar seu banho.
Percebo que ela não vai largar do meu pé enquanto eu não concordar, então, acato a sugestão, até porque eu estou batendo os dentes de tanto frio, e a casa ainda está gelada. A ideia de um banho quente nunca pareceu mais tentadora do que agora.
Deixo a água morna escorrer pelo corpo. Sinto como se eu tivesse corrido uma maratona, meus músculos doem, meu pulmão pesa e meu cérebro trabalha devagar. Decido não lavar o cabelo agora porque não quero precisar secá-lo e creio que deixá-lo molhado não é uma boa ideia.
Quando volto à sala, encontro Amélia recolhendo as caixas vazias de lenço de papel e tirando as canecas de chá que eu havia deixado espalhadas pela bancada e mesa de centro.
— Méli, você não precisa limpar a minha casa — digo sem esconder o constrangimento que sinto ao ver a cena.
Amélia ignora meu protesto e termina de colocar as canecas na pia. Então, ajudo pendurando o sobretudo azul que ela havia deixado sobre o sofá no cabideiro do hall de entrada antes de me sentar.
— O sabor não deve estar lá aquilo tudo, mas vai te ajudar a dormir melhor.
Ela me entrega a xícara de chá e se senta ao meu lado no sofá, soltando um suspiro, noto que ela também está exausta.
— Nem sei como agradecer o que você tem feito por mim, Méli. Me sinto abusando da sua boa vontade, você trabalhou o dia todo, e agora está aqui fazendo hora extra.
— Não estou aqui a trabalho, Julieta, estou aqui porque sou sua amiga e amigos são para essas horas.
— Quer dormir aqui? — ofereço. Não sei por que faço isso, eu nem gosto de ter pessoas na minha casa, mas quando me dou conta a pergunta já saiu da minha boca. — Não tenho quarto de hóspedes, mas esse sofá é bem confortável, já dormi nele muitas vezes.
Ela hesita e eu me arrependo por um breve momento, não porque não a quero aqui, mas porque, de repente, me parece algo antiético, além de fazer eu me sentir ligeiramente patética.
— Hm, pode ser — ela responde simplesmente. — Tudo bem.
— Tudo bem?
Tento segurar ao máximo, mas um sorriso me escapa mesmo assim. Levanto-me com cuidado para não derramar o chá que Amélia preparou enquanto eu estava no banho… eu sei que a culpa não é dela de não ter nada saboroso para colocar nessa infusão, mas mesmo assim está detestável.
— Vem, vamos pegar uns lençóis e cobertores para você.
Amélia me acompanha até o closet.
Vou empilhando tudo que ela vai precisar o mais rápido que consigo, o que, no momento, ainda é lento. Noto que ela está distraída observando o meu quarto sem parecer estar com pressa e relaxo um pouco.
É estranho vê-la ali, porque desde que terminei com a Celeste, há um ano, nenhuma mulher — além da minha avó — esteve aqui. Não que eu não tenha ido a encontros ou coisa assim, mas levar uma mulher para o meu quarto é um outro nível de intimidade.
Então, ver Amélia ali parada, mesmo que em uma situação totalmente platônica, é uma visão um tanto quanto inusitada e que provoca uma sensação engraçada no meu estômago. O mais estranho é que ela não parece desconfortável, nem deslocada, ela parece… ela.
Amélia sempre parece a vontade, como se ela pertencesse a qualquer lugar que esteja. Talvez seja apenas uma fachada, mas é, sem dúvida, uma habilidade que não tenho.
— Você precisa de um pijama? — pergunto, trazendo o foco de Amélia de volta para mim. — Escolhe um meu aí na quarta gaveta.
— Quarta? — ela indaga, franzindo o nariz arrebitado.
— O que foi?
— Todo mundo sabe que pijamas ficam na terceira gaveta! Roupa íntima, meias, pijamas — diz, apontando para cada gaveta, antes de abrir a quarta para escolher um pijama.
Essa mulher gosta de implicar com as coisas mais aleatórias, meu Deus, mas não nego que simpatizo com essa peculiaridade.
— Calcinha, sutiã, meia, pijama — respondo, apontando cada gaveta. — Por que estamos discutindo isso?
— Não sei. — Amélia ri e escolhe um pijama curto.
— Você não vai ficar com frio?
— Não gosto de pijamas compridos.
— Então tá. Você precisa de mais alguma coisa? Uma escova de dentes, talvez?
— Eu tenho uma na mochila, pode ir dormir, Juli — ela diz, puxando-me pelo braço até o pé da cama.
— Está bem, boa noite, então — digo e, sem pensar muito, planto um beijo na sua bochecha. — Obrigada por ficar comigo.
Espera!
Planto um beijo na sua bochecha?
Acho que estou doente mesmo.
— Hm, de nada.
Forço um sorriso para ela, que sai, apagando a luz e me deixando apenas com meus pensamentos.
Não sei por que fiz isso, mas agora sinto meu coração levemente acelerado e acho que não tem nada a ver com o resfriado. O que tem sim a ver com o resfriado é eu não ter conseguido sentir o cheiro cítrico dos cabelos dela.
Uma pena, porque adoro esse cheiro.
***
Domingo, 03 de junho de 2007
Estou na cozinha do Le Concorde, colocando um ovo mollet sobre a cópia ilustrada de Jane Eyre, o livro precisa sair logo para a mesa sete antes que o Pierre Escargot vá embora com nossas estrelas. Assim que termino a montagem, Maxi aparece no salão para levar o livro; ele me lança um sorriso irônico e diz:
— Eu entrego, querida Tita.
— Mas… — não tenho tempo de responder antes de Guillermo Alcântara levar o prato.
Corro para o salão para impedi-lo, mas acabo na área externa do restaurante onde Amélia está me encarando com uma taça de vinho. Ela tem um sorriso incógnito e é iluminada pela maior lua que já vi. Atrás da lua, a Aurora Boreal dança em tons de verde e amarelo.
— Méli eu preciso impedir o Maxi…
— Relaxa, Juli! — Ela se aproxima. — Você está trabalhando demais.
— Mas…
Ela me corta, passando a mão pela minha cintura e me trazendo para perto, muito perto. Por um segundo, esqueço completamente o que preciso fazer.
Sinto o corpo dela junto ao meu e minha respiração acelera e meu corpo se aquece. Ela morde os lábios, e o canto da boca forma um sorriso sedutor.
Mas antes que eu possa fazer qualquer coisa, seus olhos cor de mel dão lugar a uma tela azul com um cursor piscando. De repente seu rosto todo se torna um monitor de computador, e uma frase se forma, letra após letra.
Como se eu fosse perder meu tempo com uma frígida como você!
Com carinho,
Mia.
Acordo em um pulo, com o coração acelerado.
Sinto uma camada de suor na minha testa e levo alguns segundos para entender que foi um pesadelo.
Balanço a cabeça, tentando apagar todas as imagens da minha memória e me levanto com rapidez, como se pudesse fugir de meus pensamentos. Tudo escurece e o barulho de algo quebrando parece ecoar em algum lugar próximo.
Poucos segundos depois, o mesmo rosto que estava a centímetros do meu no sonho, está novamente me amparando. Dessa vez, graças a Deus, os olhos cor de mel não dão lugar a nada estranho, apenas me encaram com algo que parece preocupação.
— O que aconteceu?
Assim como no sonho, Amélia me segura pela cintura e me ajuda a deitar mais uma vez.
Sinto a sua mão no meu cabelo assim que recosto a cabeça no travesseiro.
— Me levantei para buscar água, mas fiquei tonta — explico.
Sua mão desce do cabelo para minha bochecha, ela é fria em contraste com a minha pele. Fecho os olhos com a sensação.
Não sei nem ao certo porque, mas meu peito pesa com a reminiscência do pesadelo.
— Meu Deus, você está quente! Está queimando de febre.
— Tô com sede.
Escuto Amélia falar alguma coisa, mas não consigo decifrar e logo sinto minha mente sendo mais uma vez sugada para o mundo dos sonhos. Não sei se é um sonho ou realidade quando Amélia aparece com um copo de água e tira a franja da minha testa antes de plantar um beijo ali.
Só volto a acordar quando sinto um movimento brusco ao meu lado, meu coração dispara sem saber o que está acontecendo, mas logo vejo Amélia me encarando na escuridão. Ela sussurra:
— Desculpa, não quis te acordar.
Sinto ela tirar a mão que estava afagando meus cabelos e vejo ela se movimentando para sair da cama.
— Aonde você vai? — pergunto, segurando ela pela mão. — Volta!
Não sei se deveria insistir, mas sei que não quero ficar sozinha.
— Só vou buscar os seus remédios.
— Tá, mas volta.
— Volto.
— Promete?
— Prometo!
Ela esboça um sorriso que imito sem nem me dar conta. Ela estica o braço até o meu roupão.
— Eu posso pegar emprestado? Para ir lá embaixo.
Afirmo com a cabeça e logo fico sozinha no quarto.
Não me lembro de me sentir tão mal assim antes, acho que estou mesmo com febre, vejo tudo embaçado e tenho dificuldades de separar sonho de realidade.
Amélia estava mesmo ao meu lado ou sonhei com isso?
Minha pergunta logo é sanada quando ela retorna com um copo de água e três remédios diferentes na palma da mão.
— Eu tenho que tomar tudo isso? — pergunto, me sentando na cama. — Tem certeza?
— Absoluta — diz, também sentando-se na beirada da cama e me entregando o copo de água. — Esse aqui é um antitérmico, esse outro é para aliviar os sintomas e esse último…hm, bom, eu não lembro, mas o farmacêutico prescreveu, então você deve tomar.
Odeio tomar remédios! Odeio ficar doente!
Mas gosto de ela estar aqui!
— E se eu tomar todos, qual a minha recompensa? — pergunto, de repente me lembrando do corpo dela junto ao meu no sonho que tive.
— Hm, ficar boa e eu parar de te encher o saco? — Amélia responde com certa ingenuidade.
— Isso não é uma recompensa.
— Ficar boa e eu continuar te enchendo o saco? — pergunta, rindo.
Deus abençoe a inocência dela.
Talvez seja melhor mesmo não tentar flertar com a minha funcionária. Preciso que essa febre passe e eu volte a raciocinar direito.
Tomo os remédios a contragosto, mas ganho um sorriso de Amélia como recompensa.
— Tudo bem, eu gosto de você me enchendo o saco — digo em seguida.
— Que bom, porque eu gosto de te encher o saco. — Ela continua sorrindo e pega o copo da minha mão. — Agora volta a dormir — acrescenta, levantando-se.
— Você não ia ficar? — Novamente minha boca é mais rápida que a minha mente afetada pela febre.
— Só vou buscar outro copo de água e meu livro.
— Mas volta — repito.
Eu preciso que essa febre passe.
— Sim, Julieta, eu vou voltar!
Quando ela volta, se senta ao meu lado e consigo notar que ela não sabe ao certo como agir, parece um pouco apreensiva.
Abre um livro e acende a luz do abajur.
— Você está sem sono? — pergunto.
— Estou.
Não consigo identificar se ela está falando a verdade, mas creio que ela diria isso de qualquer maneira.
— Você não precisa ficar de babá, Méli. — digo, levando minha mão até a dela. — Pode dormir, se eu precisar de qualquer coisa, eu te chamo.
— Tudo bem, Juli. Dorme bem.
Sinto mais uma vez um beijo na minha testa e dessa vez tenho certeza de que não é um sonho.
***
— Juli…
Escuto meu nome, em seguida sinto um cafuné nos meus cabelos. O carinho faz eu mergulhar ainda mais no sono. Mas a voz me chama de novo:
— Juli, acorda.
— Hm? Méli? — Abro os olhos e vejo Amélia. Ela pende a cabeça para o lado e me olha com certo zelo. — Que horas são?
— Quase meio-dia — ela me responde. — Como você está se sentindo?
Paro para pensar um pouco na resposta, e ela continua acariciando meu cabelo. Percebo que não estou mais tão confusa e sinto mais facilidade para respirar.
— Melhor, eu acho.
A mão de Amélia desce até a minha bochecha.
— Você ainda está um pouco quente, melhor descansar por hoje.
Talvez meus pensamentos ainda estejam um pouco confusos no fim das contas, porque sem perceber, aninho meu rosto na mão dela.
— Eu trouxe café da manhã e seus remédios — ela diz.
Me espreguiço e me sento na cama enquanto Amélia pega uma bandeja com duas medialunas, torradas, um copo de suco de laranja natural, uma xícara de café com leite, uma tigela de kiwi cortado em cubinhos e mais três comprimidos.
— Uau! Méli, não precisava se incomodar — digo, meio sem graça.
Me sinto envergonhada de ela estar aqui ainda e eu estar abusando de uma amizade tão recente. Mas, ao mesmo tempo, estou feliz de ela estar, não sei como teria sido essa noite sem ela.
— Cuidar de você não é um incômodo. — Ela sorri para mim. Novamente sinto certo embaraço e a lembrança do sonho volta a minha mente. Desvio o olhar para a bandeja, sem conseguir encará-la. — Aqui ó — Ela me entrega um copo —, toma o suco, você precisa de vitamina C.
— Sim, senhora — respondo. — Você vai comer comigo, não é?
— Eu já comi.
— Por favor — digo. Sinto que preciso compensá-la de alguma forma. — Pelo menos me faz companhia debaixo das cobertas, está frio aí fora.
As bochechas dela coram e só então percebo o que falei.
Espero que esse remédio de febre aja logo.
— Hm, tá, só me deixa trocar essa calça jeans por um short então.
Volta alguns minutos depois, vestindo o mesmo pijama que emprestei para ela ontem. O short é bastante curto e deixa boa parte da sua coxa de fora. Amélia tem pernas bonitas, longas — quer dizer, longas para alguém da altura dela —, mas não super definidas. Ela não parece ser do tipo que malha ou corre muito, porque suas pernas têm contornos suaves… e parecem tão macias.
— Eu passei na locadora também — ela anuncia, entrando debaixo da coberta e me tirando do transe que estava.
Sacudo a cabeça quando percebo o que estava fazendo.
ELA É MINHA FUNCIONARIA!
Tento me lembrar mais uma vez.
— Espero ter acertado na escolha — ela continua —, peguei: De repente 30, O Mágico de Oz, Quatro Casamentos e um Funeral, e Dirty Dancing.
— Acho que vou começar a ficar doente mais vezes — brinco, comendo um cubo de kiwi.
— Não, por favor. Eu fiquei muito preocupada.
O tom dela faz com que eu me vire para olhá-la nos olhos. Sinto a culpa de estar abusando da generosidade dela se somando à culpa de tê-la deixado preocupada.
— Me desculpa se eu te assustei de madrugada — digo e coloco a mão sobre a dela, tentando expressar minha sinceridade.
— Não! Está tudo bem. O importante é que você já está melhorando — ela diz, no seu tradicional tom despretensioso com o qual já me acostumei. — Quer dizer, você parece melhor.
— E estou! Obrigada por ter cuidado de mim — digo de maneira honesta, porque estou mesmo imensamente agradecida por ela ter estado comigo essa noite.
— Bom, não é como se eu tivesse uma trilha pela Cordilheira dos Andes para fazer ou coisa assim.
Solto uma gargalhada, mas ao mesmo tempo sinto uma sensação estranha no estômago ao lembrar que Amélia disse que odeia cuidar de gente doente. Ainda assim, cuidou de mim.
— É justo.
— Bom, e qual é o escolhido para começar a maratona? — pergunta, espalhando os DVDs na cama.
— Hm, eu gosto de todos. O Mágico de Oz era um dos meus preferidos na infância. — Examino as capas uma a uma. — Mas, ninguém coloca a Baby de lado — afirmo e entrego a cópia de Dirty Dancing para ela.
— Ótima escolha.
Ela se levanta para colocar o filme e mais uma vez meus olhos desviam para as pernas dela.
— É agora que você me diz que também sabe a coreografia de I’ve Had the Time of My Life, de tanto assistir ao filme quando era criança? — Amélia pergunta, aconchegando-se ao meu lado e roubando um kiwi da bandeja.
— Ei, você não disse que já tinha comido? — pergunto, dando um tapinha na mão dela, mais na tentativa de mudar de assunto do que qualquer outra coisa.
Amélia dá de ombros.
— Tudo bem se souber, eu não vou pedir para você me mostrar nem nada, mas só porque você está doente.
— Sabe, você foi a primeira pessoa para quem eu contei que dançava na frente da TV com os vídeos da minha mãe. Além do meu pai e da minha avó, que me viram dançando, é claro. Mas vou te falar, já me arrependi de compartilhar essa informação.
— Agora é tarde — brinca Amélia, dando play no filme.
É realmente um mistério para mim o porquê de eu continuar contando coisas para ela que nunca contei para ninguém. Mas sempre escapa da minha boca sem nem eu ao menos parar para pensar.
— Eu adoro essa música — comento, assim que a cena inicial começa com Be My Baby das The Ronettes.
Começo a me sentir meio sonolenta já, creio que sejam os remédios que tomei.
— Sim — ela concorda. Dessa vez, parece mais à vontade em estar na minha cama e sinto o corpo dela perto do meu. — Acho que o filme nem é bom de verdade, tipo, o roteiro eu digo. São as músicas e as coreografias que fazem ele ser o que é.
— Que absurdo! — exclamo. — Quem não ama um amor proibido?
Amélia me olha com um sorriso pretensioso.
— Ora, ora, ora — ela diz e me dá uma cutucada de leve nas costelas. — Quem poderia adivinhar que Julieta Valverde, a dama de ferro do Le Concorde, era uma romântica?
Deixo escapar uma risada um pouco pelo comentário e um pouco porque senti cócegas.
— Não conta para ninguém.
Ela solta uma risada da minha cara, mas diz:
— Não se preocupa, seu segredo tá seguro comigo.
Voltamos ao filme, mas logo sou vencida pelo sono.
***
Acordo com a luz do sol atravessando o tecido fino da cortina. A TV está desligada e o lugar ao meu lado está frio.
A bandeja com o café da manhã também não está mais aqui. Me levanto para ir ao banheiro lavar meu rosto e escovar meus dentes e percebo que estou melhor do que estava ontem. Pelo jeito os remédios já começaram a fazer efeito… ou talvez tenha sido a minha enfermeira.
Seja como for, já é uma evolução, embora ainda me sinta meio fraca. Prendo meu cabelo em um coque, mas não consigo fazer muita coisa com a minha cara amassada.
Assim que saio do quarto, vejo Amélia na cozinha cortando algum ingrediente.
— Amélia, o que você está fazendo? Você não precisa cozinhar, podemos pedir comida.
— Assim você me ofende, Julieta — diz ela. Agora consigo ver que está cortando uma cenoura em cubos. — Você prefere mesmo delivery do que a minha comida?
Me aproximo dela e me sinto estranha de repente. É a primeira vez que uma mulher cozinha na minha casa desde a Maria, e a domesticidade do momento me causa uma sensação estranha no peito. Me encosto na bancada ao lado dela.
— Claro que não, só não quero abusar ainda mais da sua boa vontade.
— Eu juro que se você insinuar mais uma vez que eu estou aqui forçada ou por obrigação, eu vou me ofender de verdade e vou embora — ela diz, balançando a faca na sua mão de maneira efusiva.
Tento conter meu riso, mas ver Amélia irritada é como ver um cupcake irritado.
— Está bem, está bem, me desculpa. — Levanto os braços em rendição. — É só que não estou acostumada com ninguém me mimando assim. Me deixa te ajudar pelo menos.
E não estou acostumada mesmo. Meu pai, apesar de incrível, sempre passou muitas e muitas horas no restaurante e poucas em casa. Minha avó sempre morou em Mar del Plata e todas as minhas namoradas eram tão obcecadas com o trabalho quanto eu.
É estranho, mas sempre tive essa tendência a atrair mulheres mais sérias e um pouco distantes, acho que por eu passar essa imagem também e me abrir muito pouco. A culpa não era delas, é claro. Mas no fundo, sempre fui romântica, sempre quis uma relação que faça meu coração derreter só de estar perto da pessoa. Uma relação na qual eu não precise manter essa personagem fria e inabalável que uso na vida profissional.
Enfim, isso não vem ao caso agora.
O que importa é que Amélia não é nem da minha família nem minha namorada e mesmo assim está aqui agora. E não estou acostumada.
— Não precisa, Juli — ela diz. — Era para você estar descansando.
— Eu não estou com a Peste Bubônica, Méli. É só um resfriado — digo, louca para ajudar de alguma forma. — Eu consigo picar uma cebola sem cair dura no chão.
— Hm, nesse caso, você pode ser minha sous chef se quiser, mas se você se sentir mal, volta para o quarto, está bem?
— Sim, chef — provoco. — E o que é para eu fazer?
— Pode cortar o salsão. Pedaços de um centímetro — ela ordena.
— Que séria! — brinco. — O que vai sair aqui, afinal?
— Um minestrone.
— Delícia! Estou morrendo de fome já.
Pego mais uma tábua no armário embaixo do forno e uma faca de chef. Monto minha área de trabalho ao lado dela e, enquanto ela corta a cenoura e cebola, eu pico o salsão.
Assim que a primeira parte do mise en place fica pronta, Amélia começa o preparo e eu continuo cortando o restante dos ingredientes.
— E quem mais vem comer aqui hoje? — pergunto, vendo o volume de ingredientes.
— Vou fazer a mais para você ter comida hoje à noite e amanhã, porque pelo que eu vi naquela gaveta ali…— ela aponta com a colher de pau para a gaveta embaixo da cafeteira em que guardo os cardápios e cartões de restaurantes — , você vive de delivery.
— Eu gosto de valorizar os profissionais de cozinha.
— Sei. Bom, então valorize esta profissional — diz, apontando para si mesma —, e coma comida de verdade enquanto estiver doente.
— Sim, chef!
Com o canto de olho, observo Amélia mexer a panela enquanto continuo cortando a abobrinha. É muito claro o amor que ela tem por cozinhar e a naturalidade com que lida com a comida. Nesse tempo em que trabalhamos juntas, já pude notar que ela é aquele tipo de cozinheira sensível à delicadeza dos ingredientes, ela sente as texturas e aromas e sabe exatamente o sabor que terá mesmo antes de provar, e conhece os pontos apenas pela aparência e pelo toque. Essa é uma habilidade difícil de conseguir em um cozinheiro profissional hoje em dia, a maioria é muito dependente de termômetros, timers e medidores. Poucos tem a habilidade e sensibilidade de cozinhar usando apenas os sentidos.
— Julieta, esse corte não está padronizado — ela diz, parando ao meu lado e me tirando no meu devaneio.
Eu acho que ela está me imitando.
— Hm, desculpa, chef.
— Olha esse corte aqui, não dá para usar. Este cubo aqui parece um pinheiro de Natal — ela diz, pegando um cubo perfeitamente cortado de abobrinha da minha tábua.
— Ei, eu nunca disse isso — me defendo, virando-me para Amélia.
Ela está mais perto do que calculei, então dou um passo para trás, sentindo a bancada contra a minha lombar.
— Ah, disse, sim!
Ela cruza os braços, com um sorriso pretensioso.
— Não para você — respondo, tentando usar a minha melhor cara de inocente.
Para ser sincera, eu nunca lembro as coisas que falo quando estou nervosa na cozinha, então é possível que tenha dito isso mesmo.
— Não, para mim você disse que não se importava se eu tinha pena do filé mignon ou não — diz, ainda com o mesmo sorriso.
Bem, disso eu lembro.
— Que megera — falo sobre mim mesma.
— Só um pouquinho. — Ela apoia uma mão na península e outra na bancada, me encurralando. — Mas até que eu gosto!
De repente, percebo que não tenho mais para onde recuar, Amélia está a apenas alguns centímetros de mim e sinto novamente o cheiro cítrico dos cabelos dela.
Meu sonho vem a minha mente mais uma vez e engulo em seco com a memória. Minha respiração acelera e meu estomago parece infestado por um enxame de borboletas ou seja lá qual for o coletivo correto de borboletas.
— Gosta? — pergunto em um sussurro, e meus olhos se voltam para os lábios rosados dela.
Amélia tem lábios cheios e convidativos e sinto meu coração martelando no peito e a boca seca de repente.
— Uhum — ela responde sem desviar os olhos da minha boca.
Sinto o corpo dela muito próximo ao meu e umedeço os lábios por instinto. E nesse momento não me importo com mais nada, quero apenas cruzar o resto do espaço e beijar Amélia.
Meu corpo todo reage a esse pensamento.
— Quer dizer — ela fala, afastando-se de repente, como se tivesse levado um choque —, acho que é, hm, bom para manter todo mundo motivado a ser melhor.
O quê?
Fico sem reação e sinto meu coração partindo.
A mesma sensação de humilhação que me acometeu no pesadelo toma conta de mim mais uma vez.
Não sei o que fazer e Amélia apenas me encara com certo pesar, talvez por notar que eu queria beijá-la. De novo, tenho a sensação de que ela me acha patética.
— Eu, é…Eu não tô me sentindo muito bem, vou tomar um banho quente pra ver se eu melhoro — digo, olhando para tudo, menos para ela.
— Você não quer se deitar? — pergunta, aproximando-se de mim.
— Não — falo. — Só preciso de um banho mesmo. Você, hm, você termina o almoço?
— Sim, sim, claro.
Caminho o mais rápido que consigo até o meu quarto e então meu banheiro. Assim que me olho no espelho, sinto mais uma vez a humilhação fervendo dentro de mim. Estou doente, com a cara péssima, descabelada e nem um pouco atraente.
Como Amélia poderia, em nome de Deus, querer beijar alguém nesse estado???
Sinto meus olhos ardendo e lágrimas começam a brotar. Ligo o chuveiro e deixo o banho quente me envolver.
Pela primeira vez, admito para mim mesma o que sinto pela Amélia. Apesar de não saber como aconteceu, quando dei por mim já estava apaixonada.
Sei que não deveria, ou melhor, que não devo. E que deveria estar agradecida por ela ter recuado, mas estou apenas de coração partido.
É tão óbvio para mim agora que ela é exatamente aquilo que eu queria: gentil, bem-humorada, inteligente, carinhosa, talentosa…
E, naquele momento, com o corpo dela contra o meu, eu estava disposta a jogar a minha própria regra de não me envolver com colegas de trabalho pela janela.
Para isso, no entanto, Amélia teria que querer também, e ficou bastante claro que ela não quer. Deve ter sido a febre e os remédios que me deixaram confusa, e me fizeram confundir os sinais.
Deixo a água escorrer pelo rosto, como se ela pudesse lavar todos os meus sentimentos.
***
Saio do banho com uma sensação um pouco melhor e disposta a não deixar minhas emoções estragarem nem minha amizade, nem meu relacionamento profissional com Amélia.
Fico alegre em perceber que meu olfato está voltando e, assim que abro a porta do quarto, o cheiro do minestrone invade minhas narinas. Meu estômago se agita com a ideia de um prato quente. Nem sei que horas são, mas deve passar bastante da hora em que normalmente almoço.
— Cheiroso isso — digo e me sento na bancada de café da manhã.
Amélia parece tomar um susto e dá um pulo ao me ouvir, tenho a impressão de que estava perdida em pensamentos.
Ela força um sorriso para mim, como se estivesse testando o clima.
— Hm, modéstia à parte, meu minestrone era o prato mais pedido no inverno no hotel da minha família.
Ao mesmo tempo que fico contente de ela entender o recado e ignorar o que aconteceu, uma parte de mim queria que fosse diferente.
— Se não cumprir com as expectativas geradas, eu vou anotar no dossiê mensal que mantenho sobre os meus cozinheiros.
Amélia estreita os olhos, me examinando, e uma risada de canto de boca se forma.
— Eu juro que não sei identificar se isso é uma piada ou não — ela diz, sorrindo.
Apenas dou de ombros, um sorriso me escapa e fico feliz de o clima voltar ao normal. Ela continua:
— Pensando bem, você deve mesmo ter um dossiê detalhado sobre todo mundo.
— Não se preocupa, o seu balanço geral ainda tá positivo — digo e lanço uma piscada.
Ela fica corada.
— Ufa — diz de maneira teatral, passando a mão na testa, como que tirando o suor.
Almoçamos em um silêncio forçadamente confortável, se é que isso faz algum sentido. Estávamos tão obstinadas a deixar o clima leve, que a pressão de deixá-lo assim, o deixava, na verdade, bastante tenso.
Depois de muito insistir, Amélia “permiti” que eu lave a louça da minha própria casa… Que menina mandona.
— Você quer ver algum outro filme? — ela pergunta, um pouco tímida, enquanto termino de guardar o último prato.
A ideia de ver um filme parece ótima. Me ponho a pensar nos filmes que ela locou, mas não lembro de todos. Acredito que ela toma o meu silêncio como um não e se apressa em continuar:
— Quer dizer, já está tarde e eu tô aqui te enchendo ainda. Tá na hora de eu ir…
— Quê? Não, não — corto ela. — Eu só não lembro quais são os DVDs. Mas, sim, quero ver um filme. Você pegou o Mágico de Oz, né?
— Peguei!
Apenas sorrio.
Dessa vez decidimos assistir na sala. Eu pego alguns cobertores e Amélia estoura pipoca, que eu tenho certeza de que não tinha, então acho que ela mesma comprou. E nos jogamos no sofá.
Nada como se perder por duas horas em Oz com a Dorothy e com o Totó. É impressionante como existem histórias em que não importa quantas vezes você volte para ela, sempre vai sentir a mesma sensação de conforto, ao mesmo tempo em que trará reflexões novas. Não porque a história mude, mas porque a sua vida e visão de mundo mudam.
Escuto Amélia fungando ao meu lado ao ouvir o Homem de Lata falar que agora sabe que tem um coração porque ele está partido. Ela nota eu a olhando de canto de olho e solta uma risada.
— O quê? Vai dizer que você não fica emotiva com esse filme?
— Sim, mas não em público — digo, mantendo a minha dignidade.
— Em público? Tá só nós duas aqui! Achei que a gente já tinha alcançado esse nível de amizade.
Solto uma risada da carinha de filhote perdido dela e coloco o braço sobre os seus ombros e a puxo para um abraço.
— Sim, sim, pode chorar a vontade, eu prometo que não conto pra ninguém.
— Como você pode não chorar nessa cena?
— Vou te contar um segredo — digo, e tiro o braço dos ombros dela. —, eu odiava essa cena quando era criança, porque pra mim não fazia sentido nenhum ele descobrir que tem um coração só para ser partido no fim. Achava que seria muito melhor passar a vida sem amar nada. Nunca entendi direito o sentido dessa cena.
Ela vira o rosto para me estudar, não sei o que ela está pensando, mas seu rosto está mais sério de repente.
— O sentido é que vale muito mais amar e perder do que nunca amar — ela diz em um quase sussurro.
— Vale mesmo? — pergunto, sem ter a resposta.
Ela está a pouco mais de um palmo de distância de mim.
— Você acha que não?
— Sem amor não tem dor.
— Sem amor não tem nada, Juli!
Dessa vez, fico sem resposta. Talvez ela tenha razão, mas ao mesmo tempo, me parece tão injusto.
A gritaria da Dorothy ao voltar para a fazenda no Kansas chama nossa atenção e desviamos o olhar mais uma vez para a TV.
Terminamos de assistir ao filme em silêncio e, não demora muito, os créditos começam a rolar e ambas sabemos o que isso significa. Amélia se levanta e me ajuda a organizar a sala antes de anunciar que já está indo, como não tenho nenhuma desculpa para convencê-la a ficar, a acompanho até a porta.
— Você não quer que eu te leve? — pergunto.
— Claro que não, você tá doente! E tem um ponto de táxi ali na frente do parque.
— Eu já tô bem melhor.
Não é mentira, eu estou mesmo melhor. Mas o maior motivo de eu insistir é que sinto que preciso retribuir, de alguma forma, o fato de ela ter cuidado de mim enquanto estava mal.
Amélia passa o braço pelo meu pescoço com um sorriso incrédulo.
— Não precisa, Juli — diz e planta um beijo na minha bochecha. — Mas obrigada mesmo assim.
Abraço ela também, não sei dizer quando nossa relação se tornou tão física, mas de repente, parece que nos abraçamos o tempo todo e ainda assim, nunca é o suficiente. Mais uma vez o cheiro cítrico invade minhas narinas e sinto um aperto no peito.
Tenho que me lembrar o tempo todo de que ela é minha funcionária. E mais do que isso, promovi ela para ser a minha sous chef.
Amélia me lança mais um sorriso e entra no elevador.
Acho que terei dias longos pela frente.