Tala

⎯ O Ravi perguntou por você ontem na festa da Indira — minha mãe disse. — Foi uma pena você ter tido dor de barriga minutos antes de a gente sair.

Eu reconhecia sarcasmo quando eu escutava. Apesar de, no dia anterior, ela ter parecido acreditar que eu estava mesmo passando mal.

Eu faria qualquer coisa para não ir àquele aniversário, qualquer coisa mesmo, mas infelizmente não havia conseguido pensar em uma desculpa melhor.

Apesar de que, a verdade é que mais um pouco e nem seria mentira, já que a simples menção de um novo pretendente, ou um antigo como era o caso do Ravi, fazia os músculos do meu estômago se contraírem e minhas mãos suarem. Tipo uma reação pavloviana.

⎯ Pois é ⎯ falei, já sabendo o que vinha pela frente.

⎯ Você tinha que ter visto como ele tá bonito. Eu acho que ele tá malhando, porque os braços dele estavam explodindo na camisa branca que ele tava usando. ⎯ Ela parou para se abanar. ⎯ Se fosse eu no seu lugar, agarrava aquele pedaço de mau caminho sem nem pensar duas vezes.

⎯ Pelo jeito o papai não tá em casa, né? — perguntei.

Ela teve a decência de ficar corada por meio segundo.

⎯ Ele saiu pra jogar curling. De novo.

⎯ Não sei que graça ele vê nisso — comentei.

Aproveitei a brecha para tentar desviar a atenção dela para a antipatia que eu sabia que sentia pelo recém-adquirido hobby do meu pai.

⎯ Nem eu! Nunca moveu uma palha nessa casa e agora fica varrendo o chão feito um besta pra uma chaleira deslizar.

⎯ É mesmo um esporte bem estranho ⎯ concordei.

⎯ Mas voltando ao Ravi…

Deus! Ela tá obcecada.

Meus pais são indianos e acham que, aos 28, eu estou encalhada. Talvez até mais que encalhada. Acham que sou um caso perdido. Mesmo assim não desistem de tentar me achar um marido. De preferência, também indiano.

Apesar de achar que eles são ligados demais as tradições para pessoas que escolheram outro país para viver, eu amo minha família e não suporto a ideia de desapontá-los. Por isso eles não sabem e talvez nunca nem venham a saber, que eu não quero me casar. Pelo menos não com um homem!

Em geral, não é difícil manter minha vida familiar separada da amorosa. Eu fiz faculdade em Toronto e quando voltei para Halifax aluguei um apartamento para morar sozinha sob a alegação de que queria estar perto do trabalho.

Meus pais não se opuseram porque eles mesmos achavam Clayton Park, a região em que moram, meio fora de mão. E agora que a Nadini, minha irmã mais nova que mora duas casas depois deles, acabou de ter bebê é que eles nunca mais vão sair dali.

Então, como eu disse, levar uma vida dupla não é assim tão difícil. É mais uma questão de hábito.

Com exceção da minha última namorada, Rachel, que tinha uma obsessão bastante irritante com o tema “apresentar para a família”, todos os outros relacionamentos que eu tive foram tranquilos nesse aspecto.

Eu sempre deixei claro os meus motivos e isso sempre foi suficiente. Menos para Rachel, que achava um absurdo que eu a “escondesse”. Como se isso fosse sobre ela e não sobre mim.

— …que rapaz mais educado — minha mãe continuava a tagarelar sobre Ravi. — A Indira tem razão de se orgulhar, ele é tão atencioso, ficou mais de meia hora conversando comigo. Me fez várias perguntas sobre você, Tala.

⎯ Na época da escola ele me chamava de Tala Coala.

⎯ Que gracinha, é um bicho tão fofinho.

⎯ Não era um elogio, mãe — falei. — Você já viu o tamanho do nariz de um coala?

⎯ Certamente você interpretou mal, minha filha. Você sempre teve dificuldade de enxergar como você é bonita. Sempre teve complexo com o seu nariz, o que é uma grande bobagem.

Já fazia muito tempo que eu era bem resolvida com o meu nariz.

⎯ Ele também me chamava de ladra de oxigênio e nariz de tucano!

⎯ Bom, as crianças às vezes falam só pra implicar.

⎯ Sim, certamente era o jeito de ele disfarçar o incrível fascínio que tinha por mim — ironizei.

⎯ Exatamente!

Tudo bem, eu desisto. Minha mãe nunca vai entender e, pensando bem, eu nem quero que ela entenda.

***

Eu esperava a penúltima paciente do dia.

Ela já estava quinze minutos atrasada quando entrou esbaforida na minha sala.

Sua capa de chuva estava tão encharcada que em poucos segundos uma poça de água começou a se formar bem no meio da minha sala. Indiquei o cabideiro com certa pressa, na esperança de que ela parasse de molhar o meu piso.

⎯ Desculpa, eu fiquei presa no trabalho ⎯ ela se retratou enquanto pendurava a capa.

Em seguida, soltou os cabelos que estavam presos em um rabo de cavalo e eles caíram em ondas douradas, como em uma propaganda de shampoo.

Não vou dizer que, como psicóloga, eu me orgulhe disso, mas no momento que eu a vi de frente pela primeira vez, toda a irritação que eu estava sentindo com o atraso e a inundação da minha sala se dissipou.

Não que eu fique julgando as minhas pacientes pela beleza com frequência, é só que… Bom, você tinha que vê-la.

O cabelo loiro e os olhos verdes nem eram a parte mais bonita do seu rosto. Ela tinha maçãs do rosto bem desenhadas e os lábios não eram nem muito carnudos, nem finos demais. Além disso, seu rosto era cheio de sardinhas sobre o nariz levemente arrebitado.

⎯ Tudo bem, não tem problema, Alex — falei, no tom mais profissional possível. — Você aceita um café ou um chá?

⎯ Aceito um café ⎯ ela respondeu, então se acomodou no sofá, deixando a sua enorme mochila bem ao lado.

⎯ Com creme? — perguntei.

⎯ Sem, por favor.

⎯ Você é paramédica, certo? Eu estava dando uma lida na sua ficha enquanto esperava.

Não constava muita coisa, apenas seu nome, idade e profissão.

⎯ Sou — ela respondeu, balançando a cabeça em concordância. — Dias como hoje são cheios de ocorrências. Me desculpa mais uma vez.

⎯ Não precisa se desculpar ⎯ falei entregando o café. ⎯ Mas nossa consulta terá que ser um pouco mais curta.

⎯ Claro.

⎯ Acho que a gente pode começar com você me contando sobre as suas motivações para marcar a consulta.

Me sentei no outro sofá, de frente para ela e logo me peguei analisando as suas roupas. Não me julgue, eu era psicóloga, era paga justamente para isso.

Ela estava com uma calça jeans tão rasgada que deixava o joelho todo de fora e botinas caramelo que, ao contrário do jeans, pareciam velhas de verdade. Ela estava com uma camisa de flanela vermelha e preta que a poucos anos indicaria com quase cem por cento de certeza que ela se envolvia com mulheres. Hoje em dia, no entanto, havia se tornado um item de moda comum entre todas as mulheres, então era difícil ter certeza.

⎯ Eu preciso de ajuda para terminar com a minha namorada — Alex falou.

E como em um passe de mágica, a minha dúvida desapareceu.

Por alguma razão, senti certa vontade de sorrir com essa informação. Mas eu tinha a musculatura do meu rosto bem treinada para não esboçar nem uma única reação durante as sessões.

⎯ Quer dizer, não que eu não tenha coragem ou certeza — Alex continuou. — É só que preciso conversar mesmo. Para clarear as ideias, sabe?

Ela gesticulava com uma mão enquanto segurava o café com a outra, o que me deu a sensação incômoda de que a qualquer momento ela iria derramar o conteúdo sobre ela mesma. Ou pior, sobre o meu estofado recém trocado.

O café não foi derramado, mas me fez reparar nas mãos dela. Eram mãos bonitas. Eu adorava mãos bonitas.

⎯ O fato de você ser bem objetiva e ir direto ao ponto vai te ajudar bastante, Alex — falei.

⎯ Acho que tem mais a ver com não conseguir disfarçar o que eu tô pensando mesmo — ela respondeu, não parecendo tão feliz com isso.

⎯ Ser honesta é uma coisa boa.

⎯ Ah, nem sempre — ela falou, franzindo o nariz arrebitado. — Às vezes só traz dor de cabeça.

⎯ Por exemplo, com a sua namorada?

⎯ De certa forma. Não deveria ser um problema, você não acha, doutora? Eu posso te chamar de doutora?

⎯ Pode me chamar de Tala.

⎯ Ah, Tala, é mesmo. Que nome bonito.

⎯ Obrigada.

⎯ É árabe?

⎯ Indiano.

⎯ Você é indiana?

⎯ Eu nasci aqui, mas meus pais são indianos.

⎯ E você já esteve na Índia?

⎯ Já, mas faz muit… 

Êpa! Quando foi que os papéis se inverteram?

Limpei a garganta antes de voltar ao meu tom profissional:

— Acho que a gente se desviou um pouco do assunto — falei. — Você estava me contando sobre ser honesta com a sua namorada.

⎯ Ah, sim, desculpa — ela disse, gesticulando, como se não fosse nada demais. — Então, não deveria ser um problema, certo? Deveria ser uma coisa boa. Mas eu sinto que tô sempre pisando em ovos com ela. Sabe quando você conta uma coisa que era pra ser só engraçada ou divertida e aí do nada vira motivo pra uma discussão?

⎯ Entendo.

⎯ Já não sinto mais vontade de contar nada pra ela.

Por alguma razão, me lembrei de Rachel, minha ex.

⎯ Há quanto tempo vocês estão juntas? — perguntei.

⎯ Seis meses.

⎯ É um tempo relativamente curto.

⎯ Sim, pra tá tudo uma merda, né?

Ela falou e soltou uma risadinha, como se me conhecesse há anos.

⎯ E está? — perguntei.

— O quê?

— Tudo uma merda?

Ela deu de ombros, mas respondeu:

⎯ Sei lá, eu gosto dela. Ou gostava, eu não sei mais.

⎯ Me conta um pouco sobre vocês — direcionei a conversa. — O que costumam fazer quando estão juntas?

⎯ Além de brigar? ⎯ Ela franziu o rosto de novo. ⎯ Bom, no início não era assim, a gente saía bastante, às vezes com os meus amigos e às vezes com os dela. A gente sempre se via, nem que fosse pra tomar um café e contar como tinha sido nosso dia.

⎯ E o que mudou? — perguntei, olhando o meu relógio de pulso.

Já havia passado quatro minutos do horário dela.

⎯ Ela começou a implicar com os meus amigos — Alex disse. — Aos poucos a gente parou de sair com eles, mas eu só me dei conta disso agora.

⎯ Alex, infelizmente hoje nosso tempo tá acabando — falei. — Não tenho como estender a consulta porque tenho outro paciente depois de você.

⎯ Tudo bem.

⎯ A gente continua essa conversa na quinta.

Alex se despediu, jogou uma das alças da mochila sobre o ombro e saiu pela porta deixando para trás as poças de água e várias interrogações na minha cabeça.

***

Na quinta, mais uma vez a Alex era a penúltima paciente do dia e mais uma vez ela se atrasou, embora, dessa vez, por cinco minutos apenas.

⎯ Me desculpa — ela falou, entrando da mesma forma esbaforida que na primeira consulta. — Fiquei presa no trabalho de novo.

⎯ Não precisa se desculpar. Seu trabalho é importante.

E era mesmo. Eu sabia que ela não havia se atrasado por desleixo ou capricho, era porque ela estava ajudando a salvar a vida de alguém. O que poderia ser mais importante que isso?

⎯ Obrigada. É bom ouvir isso.

Dessa vez ela ainda vestia o uniforme azul escuro dos paramédicos. Não sei como ela conseguia ficar tão bem naquela camisa cheia de bolsos e calça cargo, mas desconfiava que ela ficaria bonita vestindo até um saco de batatas.

⎯ Acho que se a gente iniciar logo poderemos compensar os minutos que perdemos na nossa primeira sessão. Tudo bem?

⎯ Tudo bem — ela respondeu.

⎯ Então, Alex, como você tá se sentindo hoje? Alguma mudança de segunda para cá? ⎯ perguntei assim que ela pareceu confortável o suficiente no sofá.

⎯ Tudo na mesma. Ainda quero terminar, só não sei como fazer isso.

⎯ Na nossa primeira conversa, você disse que não era falta de coragem…

⎯ Não é — ela falou de maneira enfática. — Quer dizer, não é falta de coragem coragem, sabe? É mais falta de ânimo mesmo. Eu sei que vai ser uma conversa horrível e eu detesto confrontos. Além do mais, eu já sei o que ela vai dizer e eu fico cansada só de pensar nisso.

⎯ E o que ela vai dizer?

⎯ Primeiro vai tentar me persuadir de que não tem nada errado, depois vai dizer que a gente deveria tentar mais um pouco e por fim vai ficar irritada e me acusar de não amar ela da mesma forma que ela me ama.

⎯ Entendo — falei. — Então vocês já tiveram esse tipo de discussão antes? Você já tentou terminar outras vezes?

⎯ Já discutimos algumas vezes. Mas nunca cheguei a tentar terminar de verdade, apenas deixei a sugestão no ar, sabe? — ela perguntou, gesticulando com as mãos. — E a reação foi mais ou menos assim como eu falei.

Ela soltou um suspiro profundo e deslizou um pouco no sofá.

⎯ Você quer uma água, um chá, um expresso? — perguntei.

⎯ Um expresso, por favor.

⎯ Sem creme?

⎯ Uhum.

⎯ Por que você acha que ela se recusa a discutir a relação ou admitir que vocês não estão bem? ⎯ perguntei enquanto preparava um café para ela e um chá para mim.

⎯ Sinceramente, eu não sei. Talvez tenha a ver com o fato de ela ser traumatizada com o último relacionamento, sei lá.

⎯ É mesmo? O que você sabe sobre isso? ⎯ perguntei e entreguei o café dela, então me sentei mais uma vez.

⎯ Bem pouco, ela não gosta de falar sobre esse assunto, é meio que um tema proibido, sabe?

Eu continuava achando adorável o jeito como ela falava com as mãos. Exceto, claro, em momentos como aquele, onde ela estava segurando um copo de café quente.

⎯ Então você acha que ela está obstinada a fazer o relacionamento de vocês dar certo, porque não quer viver uma hipotética segunda desilusão? — perguntei.

⎯ É, pode ser.

⎯ Por que você não diz isso a ela? — indaguei. — Talvez trazer esse assunto à tona dê a ela uma chance de compreender melhor seus próprios sentimentos.

Sinceramente, a namorada dela parecia uma maníaca controladora e eu tinha quase certeza que abordar o relacionamento passado não iria funcionar, mas era meu trabalho sugerir caminhos através do diálogo.

⎯ Você claramente não conhece ela, Tala — Alex falou de maneira cansada. — Ah, já ia me esquecendo…

Ela meteu a mão dentro da mochila e tirou uma embalagem de papel pardo, então colocou sobre a mesa de centro antes de anunciar:

— Eu trouxe uns scones pra gente!

Como é?!

⎯ Estão bem fresquinhos, acabaram de sair do forno — ela completou.

Eu acho que havia faltado na aula em que nos ensinavam a reagir quando uma paciente bonita trazia “lanchinho” para a sessão.

— Obrigada…? — falei, sem saber direito se deveria aceitar.

Ela abriu o pacote e serviu os scones despreocupadamente.

Mas se fosse errado aceitar, eles que tirassem a minha carteirinha, porque estava com um cheiro delicioso e eu estava com fome.

Eu gostava da espontaneidade da Alex e, bem, queria que ela se sentisse confortável no meu consultório.

⎯ Eu tô morrendo de fome, preciso comer em intervalos curtos — ela explicou.

⎯ Por quê?

Imaginei que havia algum motivo médico envolvido.

⎯ Porque senão fico de mau humor.

Reprimi a risada e tentei voltar a consulta.

⎯ Hmmmmm… ⎯ ela soltou um gemido ao provar o doce. ⎯ Isso tá uma delícia, você tem que experimentar!

Se não tirassem a minha carteirinha por aceitar comida de uma paciente, talvez tirassem se descobrissem o teor dos pensamentos que cruzaram a minha mente com essa reação dela. Deus, tomara que as minhas bochechas não tenham me entregado.

Voltei minha atenção para o scone, para provar também.

⎯ Que delícia ⎯ concordei enquanto me esforçava para não deixar as migalhas caírem no tapete.

Alex estava se mostrando realmente muito boa em me desconcentrar e, nessa segunda sessão, comecei a desconfiar que ela não seria minha paciente por muito tempo.

⎯ Eu te disse ⎯ ela respondeu com um sorriso satisfeito.

⎯ Onde estávamos? — perguntei.

⎯ Você tava tentando me ajudar com os argumentos pra eu terminar o meu namoro.

⎯ Estava? — perguntei com um sorriso, porque certamente não era isso que eu estava fazendo.

⎯ Foi o que eu achei, pelo menos. — Ela ergueu os ombros. — O lance sobre o trauma com a ex foi bem esclarecedor.

Eu tinha dúvidas se ela precisava mesmo da minha ajuda.

⎯ Continuando — falei. — Na nossa primeira sessão, você comentou sobre ter se afastado involuntariamente dos seus amigos.

⎯ Ah, sim. Essa é uma coisa que eu só percebi recentemente, mas que tem me incomodado muito, muito mesmo, porque ela não gosta dos meus amigos e eu não vejo um motivo plausível pra isso. Tipo, tudo bem ela não ter afinidades, mas daí a não gostar, eu não entendo.

⎯ De nenhum?

⎯ De ninguém.

⎯ Traço de comportamento possessivo motivado por insegurança ou ciúme excessivo ⎯ falei em voz alta enquanto anotava.

Uma maníaca controladora com traços de sociopatia e inclinações narcisista, isso que essa namorada dela era. Conhecia bem esse tipinho.

⎯ Eu nunca dei motivos pra ela ter ciúme — Alex disparou, parecendo ofendida.

⎯ Não tem a ver com você — expliquei.

⎯ Então você acha que ela não gosta deles porque não gosta que ninguém se aproxime de mim?

Com certeza.

⎯ É uma possibilidade — falei.

⎯ Isso é horrível.

⎯ Infelizmente, é bem comum.

Alex terminou o café e colocou o copo sobre a mesa ao lado do que sobrou dos scones. Em seguida se ajeitou melhor no sofá.

⎯ Às vezes tenho medo de nunca encontrar a pessoa certa — ela falou, meio cabisbaixa. — Parece que eu só atraio pessoas com problemas, sei lá.

⎯ É normal se sentir assim, todos nós nos sentimos assim às vezes. Você não tá sozinha.

Eu com certeza me sentia!

— É triste mesmo assim — Alex falou.

— Eu sei — respondi. — Infelizmente, o nosso tempo tá acabando…

— Já?

Se eu pudesse desmarcar o Dennis, meu próximo paciente, desmarcaria para ficar falando com ela, mas, bem, eu era uma profissional. O que era um saco às vezes.

— Eu espero que a conversa de hoje tenha te ajudado.

⎯ Ajudou bastante — ela falou. — É uma pena que seja tão rápido.

Eu também achava.

***

Alex não apareceu na sessão de segunda, apenas me mandou uma mensagem alguns minutos antes do horário avisando que não conseguiria ir. Era justamente para essas eventualidades que meus pacientes tinham o meu número.

Na quinta, no entanto, ela chegou de bom humor.

⎯ Hoje eu trouxe biscoitos de gengibre. ⎯ Foi a primeira coisa que ela disse quando entrou na sala. ⎯ A minha nonna que fez.

Nossas sessões pareciam estar virando um piquenique no parque e tenho certeza de que se fosse qualquer outro paciente, eu já estaria irritada.

— Eu deveria estar de dieta — comentei.

Eu havia começado uma dieta nova fazia duas semanas, que certamente não envolvia docinhos no meio da tarde.

⎯ Como se você precisasse ⎯ ela falou tão casualmente que fiquei na dúvida se era um elogio ou apenas um comentário, ainda assim, senti minhas bochechas esquentando.

Aquilo não era bom.

Pelo menos do ponto de vista profissional, estávamos indo de mal a pior.

⎯ Tenho novidades ⎯ ela anunciou, ainda de pé na minha frente. ⎯ Terminei com a Rachel!

Ela parecia uma criança querendo contar alguma coisa nova que aprendeu na escola, tamanha a sua empolgação, mas a minha mente se fixou em outro ponto.

Rachel?

Quantas Rachels sociopatas, controladoras e tóxicas existiam em Halifax? Sinceramente, eu torcia para que pelo menos duas.

Alex esperava a minha reação com brilho nos olhos.

⎯ Isso é bom — falei. Aquilo era péssimo! — Quer dizer, você parece feliz.

⎯ E estou. Me sinto muito mais leve.

⎯ E a conversa, foi como você esperava?

Me acomodei no sofá, esperando que Alex imitasse meu movimento. Ela também se sentou.

⎯ Foi — respondeu. — Não posso dizer que foi agradável, mas tá feito, e é isso que importa.

⎯ Parece que minha ajuda não é mais necessária — falei na intenção de manter um certo senso de profissionalismo, mas não nego que estava torcendo para que ela não concordasse.

⎯ Eu quero continuar com a terapia — ela disse de maneira enfática.

Tive que conter o sorriso que queria escapar.

Francamente, eu era uma péssima profissional!

Pelo menos com ela.

⎯ É mesmo? — perguntei.

⎯ Com certeza! Eu gosto muito de falar com você, e gosto do seu café também.

⎯ Por falar nisso, você…

⎯ Aceito! — ela me cortou. — Sem creme, por favor.

Eu já tinha memorizado aquela informação, assim como muitas outras sobre ela. Mas apesar do meu interesse por ela e pela sua história, naquela consulta a única coisa que conseguia me concentrar era no nome da Rachel.

No final do dia, fiz algo que não fazia desde que Rachel e eu terminamos: entrei na página dela no Instagram.

Eu precisava acabar com aquela dúvida logo.

Não demorou nada para eu ter a resposta que estava procurando: Rachel, a minha ex e Rachel, ex da Alex eram na verdade a mesma Rachel. A mesma desgraçada narcisista!

— Que mundo lésbico pequeno.

Rachel ainda não tinha apagado as fotos das duas, mas minha experiência me dizia que isso aconteceria em breve.

Diferente das nossas, que eram fotos discretas, por insistência minha, é claro, as fotos das duas eram todas de casal, deixando claro o status do relacionamento.

Lembrei o que Alex falou sobre Rachel ser traumatizada com o último relacionamento, o que, pelos meus cálculos, era o nosso.

Como se ela já não fosse uma maníaca controladora antes disso!

Cliquei numa das fotos.

Era estranho ver elas juntas, senti um incômodo inesperado e, demorei um pouco para entender, que tinha mais a ver com a Alex do que com a Rachel.

Então entrei no perfil da Alex e me perdi nele.

A capacidade da Alex de me fazer ter atitudes pouquíssimo profissionais era surpreendente e a assustadora no mesmo nível.

Era muito claro que meu interesse por ela ia bem além do interesse normal por uma paciente. Mas era isso que ela era: minha paciente. Além de ex da minha ex.

Eu sabia que não podia nem ao menos pensar nisso. Ainda assim, pensava bastante.

***

Alex: cinamon roll ou muffin de chocolate?

Tala: muffin

Recebi a mensagem um pouco antes da nossa sessão.

Aquela já seria a quarta depois que Alex me contou do término e que descobri sobre a Rachel.

Alex: excelente escolha! quer que eu te leve um chai latte tb?

Tala: o muffin já tá ótimo, obrigada.

Quando ela chegou para a sessão naquele dia, fiquei até meio sem ar.

Ela estava linda!

Fiquei imaginando se ela tinha algum compromisso depois, porque ela nunca vinha tão arrumada. Aquela era a primeira vez.

Alex usava um vestido curto floral por baixo de uma jaqueta de camurça marrom que combinava com suas ankle boots.

Talvez eu tenha demorado demais no meu tour pelo look dela porque, quando me dei conta, ela me observava de volta com uma cara engraçada.

⎯ Hoje eu tô de folga ⎯ ela disse simplesmente.

⎯ Ah!

Gostaria de estar também.

⎯ Eu trouxe os muffins — ela falou. — Eu já suspeitava que você escolheria qualquer coisa com chocolate, mas resolvi perguntar mesmo assim.

⎯ Lá se vai a minha dieta para as cucuias de novo — comentei.

— Você não precisa de dieta, eu já disse — ela falou.

— Sempre dá para melhorar um pouco.

⎯ Não no seu caso — ela disse. — Eu gosto de você do jeito que você é.

Eu teria gaguejado um obrigada ou coisa do tipo, mas não me orgulho em dizer que nem isso saiu da minha boca.

Então apenas ri e tratei de tomar meu lugar para começar a consulta logo e acabar o quanto antes com o silêncio que a minha falta de resposta causou.

Alex sentou também e sua imagem cruzando as pernas foi a única coisa que minha mente registrou daqueles primeiros quinze minutos de sessão.

Eu era uma vergonha para a associação de psicólogos.

Só saí do piloto automático quando ela mudou bruscamente de assunto.

⎯ Desculpa, o quê? — perguntei.

⎯ Eu perguntei se você gosta de escalada ou talvez trilha. Gosta?

⎯ Nunca tentei escalar — respondi. — Mas já fiz trilha umas três ou quatro vezes eu acho. Por quê?

⎯ Não, nada. Curiosidade só. Eu escalo de vez em quando e pensei que… Nada, não. Só curiosidade mesmo.

Por um momento, achei que ela iria me convidar para escalar com ela. E para ser sincera, eu queria que ela me convidasse.

O resto da sessão foi um tanto constrangedor. Não porque aconteceu alguma coisa, mas porque nenhuma das duas parecia muito à vontade.

Àquela altura, eu nem sabia mais o que Alex queria resolver, porque as nossas sessões mais pareciam um encontro do que uma sessão de terapia. Ela não tinha nenhuma queixa evidente, nem parecia estar com algum sofrimento psíquico. Eu nem sabia por que ela continuava indo.

Mas eu não a queria mais como a minha paciente.

A verdade é que só tinha uma coisa a ser feita!

***

Independentemente do que viesse a acontecer entre nós, ainda que ficássemos apenas no plano da amizade e nada mais, era errado manter Alex como minha paciente.

Eu teria que dar alta para ela e indicar outro terapeuta. Isso se ela quisesse outro, porque, de onde eu via, ela nem precisava mais de terapia.

No final da tarde de sábado, decidi ir correr no Common, o parque público que ficava a alguns quarteirões do meu prédio.

Já estava correndo há uns quinze minutos quando ouvi uma voz familiar gritar meu nome. Me virei na direção do grupo de pessoas jogando futebol americano e logo reconheci a Alex.

Assim que acenei, ela largou o jogo e veio ao meu encontro.

⎯ Então é isso que terapeutas fazem no seu tempo livre?

Ela me pegou de surpresa ao me cumprimentar com um beijo no rosto. Mesmo suada, ela cheirava incrivelmente bem.

⎯ Na verdade, você me pegou em um momento raro ⎯ falei, meio sem ar. O que comprovava o que eu dizia. — Eu só saio pra correr de vez em quando.

⎯ A gente já tá acabando aqui e depois vamos beber uma cerveja no Waterfront — ela falou. — Tá a fim de se juntar à gente?

⎯ Claro — respondi.

Merda! Não devia ter aceitado.

Ela ainda era minha paciente.

— Legal! — ela respondeu com um largo sorriso que eu não consegui não retribuir.

Quer saber? Que se dane. Não era crime beber com alguém fora do expediente.

— Eu vou continuar minha corrida enquanto vocês terminam a partida, pode ser? — perguntei.

⎯ Combinado.

Ela me mandou uma piscadinha antes de se virar e correr de volta para o jogo.

Alex vestia um top e um short de moletom, o que era muito menos roupa do que eu estava habituada a ver nela. Eu fiquei ali parada olhando feito uma bocó enquanto tentava fazer minhas pernas voltarem a funcionar.

Depois de mais algumas voltas, me sentei exausta no gramado para assistir ao resto do jogo da Alex. Não sabia nem porque tinha decidido correr naquele dia. Odiava correr.

Mas, pelo menos, eu havia encontrado a Alex, então até que fora mesmo uma boa ideia.

Eu não era grande fã de esportes e não conhecia muito as regras de futebol americano, mas pela comemoração do outro time, arriscaria dizer que o time de Alex perdeu.

Eles não pareciam se importar muito com isso, porque estavam rindo e se provocando enquanto caminhavam até onde eu estava.

⎯ Pessoal, essa é a minha amiga Tala — Alex disse. — Ela vai com a gente.

Alex me apresentou um a um.

Pete, um cara grandão ruivo, que trabalhava com ela. Aisha que também trabalhava com ela. Nico, que não era mais da equipe, mas que parecia bem amigo dos três. E Kurt e Elle, que eram um casal, amigos da Alex, pelo que entendi.

— Pra beber com a gente, vai ter que se comprometer a jogar da próxima vez ⎯ Pete brincou. — Não é só aproveitar a parte boa.

⎯ É, não é só chegar pra beber ⎯ Kurt concordou.

⎯ Tem que tá junto no vexame também ⎯ Aisha concluiu.

⎯ Acreditem, vocês não iriam me querer no time — falei.

⎯ Ah, não se preocupa  ⎯ Alex falou. — Ser ruim é pré-requisito pro nosso time.

— E não saber jogar? — perguntei.

— Qual é, todo mundo sabe jogar um pouco — Elle falou.

— Vocês estão claramente subestimando o meu pouco conhecimento.

— Eu posso te ensinar se você quiser — Alex falou.

— Tá resolvido — Aisha disse.

Alex sorriu para mim e eu senti as minhas bochechas esquentarem com a oferta despretensiosa dela.

⎯ Vocês precisam de carona? — Pete perguntou.

⎯ Eu tô de carro hoje ⎯ Alex respondeu. ⎯ Você vem comigo, Tala?

⎯ Claro.

⎯ Nos encontramos lá então — Alex falou para os amigos e cada um seguiu em uma direção.

***

⎯ Aonde nós vamos, exatamente? — perguntei assim que entramos no carro.

⎯ No Moretti’s. Conhece?

⎯ Lógico. Melhor pizza da cidade.

⎯ E a melhor vista também ⎯ Alex acrescentou.

⎯ Espera! — falei. — O seu sobrenome é Moretti, o restaurante é da sua família?

— Uhum — ela respondeu com um sorriso. — A minha nonna e o meu nonno abriram… quer dizer, na verdade eles são meus bisavos, mas todo mundo chama os dois de nonna Rosa e nonno Pepe. Eles vieram da Itália nos anos cinquenta e abriram o Moretti’s logo quando chegaram. Meu avô tocou por um tempão, mas hoje é a minha tia, Becca, e a Annie, a esposa dela, que cuidam.

Esposa?

Que família mais gay.

— Espera, foi a sua nonna Rosa que fez aqueles biscoitos de gengibre?

— Foi, ela tá com 94 anos, mas continua cozinhando.

— Uau! Quero ser igual ela quando crescer — falei. — Menos pela parte de cozinhar, porque sou muito ruim.

Alex soltou uma risadinha.

— Ela tem muita energia mesmo para a idade dela.

— Então você deve saber cozinhar — falei.

Alex fez um mais ou menos com as mãos e franziu mais uma vez o seu narizinho arrebitado.

— Até sei, mas não como eles — ela falou. — O meu pai foi o único dos três irmãos que nunca trabalhou no restaurante.

— Ninguém é perfeito — brinquei.

Percebi que Alex estava dando uma volta muito maior do que o necessário, incluindo o South End no trajeto, quando poderíamos ter apenas decido pela Morris St.

Depois de rodar um pouco, achamos uma vaga na Lower Water e Alex estacionou. Ela vestiu uma camiseta do Halifax Mooseheads, o time de hockey da cidade, por cima do top antes de sair do carro.

Por sorte eu estava de legging e regata, não estava bem-vestida mas pelo menos estava coberta o suficiente.

Quando chegamos, todos já estavam lá e tinham juntado duas mesas na parte do deck mais próxima da água.

Era um final de tarde lindo e uma faixa laranja no céu destacava o azul profundo do atlântico norte, enquanto dezenas de veleiros passavam por ali.

⎯ Que demora, Alex! Se perdeu? ⎯ Pete provocou.

Tive a impressão de ver Alex ruborizar ligeiramente.

— Eu perdi a entrada da Morris — ela falou enquanto coçava a cabeça, sem graça.

Fiquei me perguntando se ela perdeu a entrada porque estava distraída ou deixou de entrar de propósito porque queria ficar mais tempo comigo.

Era muito egocentrismo achar que teria a ver comigo?

Talvez fosse apenas o meu desejo de que tivesse.

— Bom, mas se sentem logo — Elle disse.

⎯ É, senta aí, Alex ⎯ Aisha concordou. — Você tem que compensar o tempo que ficou longe da gente por causa da…

— Ih, melhor nem falar o nome, Aisha — Nico falou. — Capaz de invocar.

— … por causa da outra — Aisha concluiu.

Não nego que era estranhamente satisfatório estar no meio de tantas pessoas que também não gostavam da Rachel.

Não me entenda mal, eu não sou do tipo de cuspir no prato que comeu ou coisa assim. Mas o final do nosso relacionamento foi muito complicado e tóxico e eu tive muitas crises de ansiedade.

Ela até ameaçou me tirar do armário para a minha família.

⎯ Aliás — Elle falou, me tirando do meu devaneio. — Eu queria propor um brinde ao retorno da Alex!

Alex soltou uma risada.

⎯ Nós ainda não temos copos ⎯ Alex disse. — Eu também tenho que brindar.

— É claro que sim — Kurt concordou e fez sinal para o garçom.

Um menino de uns vinte anos apareceu com duas longneck para mim e para Alex.

— Valeu, Dave — ela falou para o menino então se virou para mim. — Você bebe? A gente tem outras opções não alcoólicas…

— Eu bebo sim.

Achei fofo da parte dela se preocupar com isso.

— Então um brinde! — Pete entoou. — À liberdade da Alex!

Todos brindaram entre comentários e risadas.

Alex me olhou um pouco envergonhada, mas na verdade eu estava achando aquilo tudo engraçado.

⎯ Então — Pete falou, alongando a última silaba. — Vocês tão saindo?

— Parabéns pela sutileza, Pete — Aisha provocou.

⎯ Deus! ⎯ Alex exclamou e deslizou na cadeira. Por um momento achei que ela ia se enfiar embaixo da mesa.

— Somos amigas — expliquei. Embora achasse que nem isso era verdade, mas eles não precisavam saber nosso status real.

— Desculpa aí — Pete falou e tomou um gole de cerveja.

— Tudo bem — respondi com um sorriso.

Alex ainda estava vermelha e não me olhava nos olhos. Quando a conversa finalmente mudou de foco, Alex se inclinou na minha direção e me pediu desculpas.

Eu senti a respiração dela no meu ouvido e os pelos da minha nuca se arrepiaram.

⎯ Não se preocupa — falei. — Seus amigos são divertidos.

Alex apenas me lançou um sorriso gentil.

Duas rodadas depois, eu já estava perfeitamente inserida na conversa e, apesar do início constrangedor, os amigos da Alex não fizeram mais nenhuma piada, pelo menos não a nosso respeito. Eles eram agradáveis e sempre faziam questão de me incluir na conversa.

A noite caiu e as luzes do cais se acenderam, deixando tudo meio mágico. Pedimos pizza, que era de fato a melhor da cidade, e, aos poucos, os amigos da Alex começaram a ir embora um a um.

Até sobrar apenas nós duas.

⎯ Me desculpa pelo que o Pete disse, ele é gente boa, mas é meio sem noção às vezes — Alex falou.

⎯ Não tem nada que se desculpar, foi divertido.

De repente, um silêncio pairou sobre nós e o clima ficou estranho.

Eu me sentia ligeiramente constrangida e Alex ocupava as mãos dobrando um guardanapo de papel.

A minha intenção era falar com ela na segunda-feira, na nossa próxima consulta, mas não tinha razão para esperar mais.

— Alex — falei e ela me olhou com certa expectativa. — Eu… eu…

— Você? — ela perguntou.

— Eu acho que eu não posso mais ser a sua psicóloga.

— Você tá me demitindo como paciente? — ela perguntou, franzindo o nariz.

— Acho que é mais elegante falar: dando alta.

— Mas você tá dizendo que não teremos mais um vínculo profissional de terapeuta-paciente?

— Eu posso te indicar outro profissional se você quis…

— Graças a Deus! — ela exclamou.

— Como?

Ela sorriu e voltou a se recostar na cadeira antes de explicar:

— Por um minuto, achei que você fosse falar que como você é minha terapeuta, a gente não poderia… enfim, vou sentir falta das sessões, mas eu posso viver sem elas.

Meu coração acelerou e senti meu estômago se contraindo, mais pelo que ficou implícito do que pelo que foi propriamente dito.

⎯ Quer caminhar um pouco? — ela ofereceu.

⎯ Claro.

Andamos pelo píer na direção em que estava o carro dela.

— Eu adorei te encontrar no parque hoje — ela falou. — Foi meio que o ponto alto do meu dia.

— Você quer me dizer que o ponto alto do seu dia não foi perder de setenta e cinco a zero no futebol americano?

— Foi de trinta e um a zero — ela corrigiu com uma risada.

— Ah, me desculpa! — Ergui as mãos em rendição. — Mas eu também fiquei feliz de te encontrar.

— Pra ser sincera, eu tava ensaiando te chamar pra sair fazia um tempo, mas, tipo, eu sabia que não podia — ela falou e senti o meu coração disparar. — Então, obrigada por me demitir.

— Eu não te demiti — falei. — Te dei alta.

— Obrigada mesmo assim — ela falou com um olhar diferente dessa vez. Mais intenso e senti as minhas pernas meio bambas.

— Foi um praz… — Antes que eu pudesse terminar a frase, senti as duas mãos dela nas minhas bochechas, então os seus lábios nos meus.

No segundo que entendi o que estava acontecendo, levei as minhas mãos à sua cintura e a puxei para mais perto, esquecendo completamente que estávamos em uma via pública.

Senti suas mãos deslizando pela minha cintura e uma corrente elétrica percorreu todo o meu corpo. Puxei seu lábio inferior com os dentes e a senti apertando a minha cintura em resposta.

— Eu acho melhor a gente sair daqui — ela falou entre beijos.

Quando ela estacionou na frente do meu prédio, eu já não tinha nenhum motivo para não perguntar…

⎯ Você quer subir?

***

Era terça-feira e eu estava terminando a minha última consulta do dia, mas a minha mente só pensava no jantar que eu e Alex teríamos mais tarde.

Seria oficialmente o nosso primeiro encontro, apesar de já termos pulado algumas etapas. Quando meu paciente foi embora, peguei meu celular para ver se tinha alguma mensagem dela, mas tudo que consegui me concentrar foi nas vinte e duas ligações perdidas da minha mãe.

Senti meu sangue gelar e logo pensei que pudesse ter acontecido algo com o meu pai ou mesmo com a minha irmã.

Retornei a ligação, sentindo as minhas mãos tremendo.

— Mãe? O que aconteceu? O papai tá bem?

— Estamos todos bem — ela disse em um tom seco que fez um frio percorrer a minha espinha. — Mas precisamos de explicações.

— O que aconteceu? — perguntei, embora de alguma forma eu soubesse do que se tratava.

— Nós recebemos uma caixa…

— Uma caixa?

— Vem pra cá agora!

Ela desligou o telefone, me deixando cheia de interrogações.

Mandei uma mensagem para Alex falando que tive uma emergência familiar e que depois explicaria melhor, mas que não poderia ir ao jantar.

Coloquei meu celular na bolsa, peguei a chave do meu carro e parti em direção à Clayton Park, vizinhança em que cresci.

Quando cheguei na casa dos meus pais, eu senti como se estivesse chegando ao meu próprio velório. Meu pai abriu a porta abatido e nem ao menos olhou nos meus olhos, enquanto minha mãe chorava no sofá.

Minha família tinha uma certa tendência ao drama, e seria até engraçado se a tragédia não tivesse a ver comigo.

Eu nem tive tempo de perguntar nada antes de a minha mãe empurrar uma caixa de sapatos, que estava na mesa de centro, na minha direção.

Fiquei me sentindo igual ao Brad Pitt, naquele filme Seven, em que ele precisa abrir a caixa, mas sabe que tem a cabeça da sua esposa dentro e por isso não quer abrir.

Respirei fundo antes de tirar a tampa.

Deixei o meu corpo cair sentado no sofá quando vi o conteúdo.

Não era a cabeça da Gwyneth Pawtrol. Era pior!

A caixa estava cheia de fotos minhas e da Rachel. Fotos que eu nunca a deixei postar, mas que nem por isso haviam deixado de existir. As fotos nos beijando não deixavam muitas dúvidas de que nós não éramos apenas amigas.

Aquela filha da puta!

⎯ Quem é essa moça? ⎯ Minha mãe perguntou.

Não conseguia tirar os meus olhos das fotos. Tinha umas quarenta fotos, algumas que eu nem sequer me lembrava de ter tirado.

⎯ Rachel — respondi, já que não tinha mais escolha. — Ela foi minha namorada.

No fundo da caixa encontrei um bilhete.

“Isso é pela Alex.”

Mas que filha duma puta!

De alguma forma, Rachel havia descoberto que eu e Alex estávamos saindo e estava se vingando.

Eu falei que ela era uma maníaca!

⎯ Foi? — minha mãe perguntou. — Tempo passado? No sentido de que não é mais?

⎯ Não — falei. — Atualmente, ela me odeia.

⎯ Então tem uma chance de você esquecer isso? ⎯ ela perguntou e apontou para caixa. ⎯ Tem uma chance de você voltar a pensar em ter um marido?

⎯ Cai na real, Salina! Essa menina nunca pensou em ter um marido — meu pai falou.

⎯ A culpa é sua — minha mãe acusou. — Se você não tivesse…

⎯ A culpa não é de ninguém — falei interrompendo os dois. Eu não era uma receita de bolo que havia desandado. Eu era a filha deles e não iria aceitar que falassem de mim como um erro. — Não tem nada de errado comigo!

— E você acha isso certo? — minha mãe perguntou, apontando para a caixa.

Revirei os olhos.

Por muitos anos, achei que se algum dia eles descobrissem, eu me sentiria triste em magoar os meus pais. Mas naquele momento só me sentia irritada.

⎯ Eu não entendo — minha mãe disse. — Por que isso foi acontecer com ela? Ela sempre foi uma boa menina.

Ela falava para o meu pai como se eu não estivesse bem na frente dela.

⎯ Ai, ai, ai! ⎯ Minha mãe lamentava e batia no peito. ⎯ Minha filha, tão bonita, tão inteligente, por que Deus?

Revirei os olhos. Eu estava irritada, mas ao mesmo tempo, estava aliviada de finalmente tirar isso do meio do caminho.

Eu nunca tinha percebido o tamanho real que aquele segredo ocupava dentro de mim.

— Tala, minha filha — meu pai falou. — Você é terapeuta. Deve saber que existe tratamento…

— O senhor nem ouse concluir essa frase — falei, aumentando o tom de voz para o meu pai pela primeira vez na minha vida. — O senhor falou correto: eu sou terapeuta. E eu sei que não tem nada de errado comigo. E se vocês não quiserem entender, bom, o problema é de vocês!

Saí pela porta da frente sentindo o meu corpo todo tremendo. Foi só quando eu entrei no carro que me permiti chorar pelo que estava acontecendo.

***

Quando cheguei em casa, tudo que eu queria era tomar um banho, um analgésico e me enfiar na cama.

Eu já estava prestes a apagar o abajur e tentar dormir quando entrou uma notificação no meu celular. Primeiro fiquei apreensiva achando que eram os meus pais, mas relaxei quando vi que era a Alex.

Ela havia respondido a minha mensagem sobre o jantar mais cedo, mas não havíamos nos falado mais.

Quando abri a mensagem, entretanto, foi como mais uma avalanche.

Era uma foto com três interrogações embaixo.

Na foto, havia uma caixa cheia de fotos idênticas às que eu tinha acabado de ver na casa dos meus pais e o bilhete dela dizia:

“Ela só tá te usando pra se vingar de mim”

Tala: eu posso explicar!

Enviei a mensagem sentindo uma sensação horrível no peito. A mensagem foi visualizada, mas Alex não respondeu.

Tentei ligar. Nada.

Tentei mais uma vez. Caixa postal.

Mandei mais uma mensagem, essa nem sequer foi visualizada.

Em um único dia, a minha vida inteira desmoronou sobre a minha cabeça. Como aquilo tinha acontecido?

Eu não sabia que existia algo pior do que meus pais descobrirem que eu era lésbica. Aquele tinha sido literalmente o meu maior medo por muito tempo. Mas, naquele momento, a ideia de a Alex não me responder mais me assustava tanto quanto os meus pais não me aceitarem.

Não consegui pregar o olho naquela noite, e como era de se esperar, no dia seguinte eu estava um bagaço. Pensei em desmarcar todos os meus pacientes e tirar o dia de folga, mas mudei de ideia quando percebi que o tempo passaria mais rápido se eu estivesse trabalhando.

O resto da semana foi a mesma coisa. Alex ainda não me respondia. Meus pais não haviam tentado me ligar. Só a Nadini, minha irmã, havia mandado uma mensagem dizendo que eu tinha que ter paciência e que meus pais iriam entender.

Em seguida mandou outra dizendo que já sabia, porque era óbvio.

Chegava a ser ridículo que aquela mensagem ligeiramente indiferente fosse a única coisa me mantendo inteira naqueles dias. Mas eu sabia que ao menos uma pessoa da minha família ainda gostava de mim.

Na sexta-feira, decidi que precisava de conselhos, então disquei o número da única pessoa que eu confiava para falar sobre amor.

— E aí? — falei quando ela atendeu. — Tá a fim de tomar uma cerveja? Eu pago!… eu preciso de conselhos. Não, eu tô em Halifax, mas vou até aí se vocês estiverem livres… eu sei que é uma viagem de três horas. Sim, tô desesperada! — exclamei e esperei a resposta. — Nos vemos em três horas!

Desliguei e, em menos de cinco minutos, já estava no meu carro a caminho de Baddeck.

Já passava das nove da noite quando cheguei, mas Abby, Eva e até mesmo Lily me receberam.

Eu ainda não conhecia a Lily, mas ela era realmente muito parecida com a Abby, tinha os mesmos olhos, o mesmo cabelo e o mesmo humor.

Ela parecia estar morrendo de sono, mas se recusava a ir dormir. Eva disse que ela poderia ficar vendo filme na sala ao lado da que estávamos até pegar no sono.

— Você gostaria de um vinho, Tala — Eva perguntou com educação.

— Acho que ela quer uma cerveja — Abby respondeu.

— Eu aceito uma cerveja — falei.

Assim que Eva se virou para buscar as bebidas, Abby me perguntou:

— O que você fez?

— Por que você acha que eu fiz alguma coisa?

— Você não teria dirigido três horas se não tivesse feito merda!

— Puxa, valeu pela confiança, Abby — ironizei.

Eva voltou com duas longnecks e entregou para nós duas.

— Eu vou deixar vocês conversarem — ela disse.

— Não, não — falei. — Você pode ficar! Na verdade, tenho certeza de que os seus conselhos serão melhores que os da Abby.

Eva soltou uma risada.

— Modéstia à parte… — ela brincou.

— Puxa, valeu pela confiança, Tala — Abby falou.

— Vou pegar uma taça de vinho então — Eva comentou.

Ela se serviu então se sentou ao lado de Abby no sofá de dois lugares, com as pernas encolhidas. Abby levou imediatamente a mão à coxa da Eva, que parecia relaxada e feliz.

Me alegrava ver as duas felizes juntas e me sentia quase como uma fada madrinha ou coisa assim.

— E que tipo de conselho você precisa? — Eva perguntou.

Tomei um gole da minha cerveja antes de resumir o que aconteceu nas últimas semanas.

Elas não me interromperam nenhuma vez, apenas escutaram prestando atenção em tudo.

— Mas que filha duma puta essa sua ex — Abby falou.

— Abby! — Eva repreendeu.

— E não é? — ela perguntou à namorada.

— Bom, é… — Eva concordou.

— E agora eu não sei o que fazer — falei.

— Olha, eu tenho, tipo, zero experiência com saída do armário para a família — Abby falou. — Na verdade, tenho zero experiência com família em geral porque essa — Ela gesticulou indicando a casa — é a primeira que eu tenho, mas acho que você tem que falar com eles de novo.

Eva esboçou um sorriso para o comentário da Abby e da indicação de que elas são uma família.

— Abby tá certa — Eva concordou. — Não sei se os indianos são parecidos com os latinos, mas os meus pais também foram super dramáticos, minha mãe chegou a falar que ia morrer.

— Acho que são parecidos sim — falei, lembrando do drama que a minha mãe fez.

— Mas depois eles se acostumaram com a ideia — ela continuou. — Porque o drama é só a primeira reação. Com o tempo eles perceberam que para me manter próxima teriam que me aceitar como eu era.

— Se os seus pais são como você descreveu — Abby falou — eles não vão querer te manter afastada por muito tempo.

— Será?

— Eu apostaria que não — ela respondeu.

— Mamãe — a voz da Lily ecoou da porta.

Ela estava praticamente dormindo em pé enquanto segurava um coelhinho de pelúcia. Ela era mesmo fofinha.

— Oi, meu amor — Eva falou. — Você quer ir dormir?

— Eu posso ficar aqui com vocês?

— Essa não é uma conversa para crianças — Eva falou.

— Ela tá praticamente dormindo, amor — Abby cochichou para Eva. — Ela tá empolgada que temos visita, deixa ela ficar aqui no sofá com a gente.

— Você acha? — Eva perguntou.

— Claro — Abby respondeu. — Vem cá, nanica!

Lily caminhou até o sofá das duas e se sentou ao lado da Abby, que abriu o braço para Lily abraçar ela e deitar a cabeça no seu ombro.

Ela parecia já estar quase dormindo.

— Viu? — Abby comentou e Eva abriu um sorriso.

O fato de Eva ter escutado a opinião de Abby sobre a filha delas, mostrava como a relação delas tinha evoluído desde que se conheceram.

 — Voltando — Abby falou para mim. — Você tem que falar com os seus pais.

— E a Alex? — perguntei. — Ela nunca vai me perdoar!

— É claro que vai — Eva disse. — Você só precisa explicar o que aconteceu.

— E se ela não quiser me ouvir?

— Ela vai te ouvir — Abby falou.

— Como você sabe?

— Porque ela gosta de você!

***

Por insistência de Abby e Eva, fiquei para dormir lá e voltei só no outro dia de manhã.

Enquanto dirigia, pensava se eu deveria mandar uma mensagem para Rachel falando tudo que eu tinha vontade.

Afinal, não foi ela quem causou tudo isso?

Mas quem eu queria enganar? Rachel se mostrou uma pessoa amarga e mesquinha, mas eu tinha uma grande parcela de culpa também. Eu havia me tornado uma pessoa covarde, e tinha mentido para todas as pessoas importantes da minha vida.

Pensando bem, eu era a única culpada pela situação em que me encontrava, afinal era eu quem tinha me metido nela. Desisti da ideia da mensagem e voltei a me concentrar na estrada. Eu não queria ser como a Rachel, não queria despejar minhas frustrações nos outros, mesmo esse outro sendo uma filha da puta!

Eva e Abby estavam certas, eu precisava corrigir o que eu tinha feito de errado. Começando com os meus pais.

Dirigi direto até Clayton Park sem prestar atenção em muita coisa ao redor, a única coisa que pensava era na conversa que deveria ter acontecido há mais de uma década.

⎯ Pai, mãe! ⎯ chamei enquanto entrava como um raio pela porta da frente, que estava sempre destrancada.

Acho que posso ter assustado os dois, porque eles apareceram na sala brancos como duas velas.

⎯ Tala? Aconteceu alguma coisa, minha filha?

Minha mãe falou “minha filha” e meu coração se aqueceu no mesmo instante. Tudo que eu mais queria era que ela me amasse do mesmo jeito que me amava antes.

⎯ Não, não. Desculpa! — falei. — Eu não queria assustar vocês. Eu só quero conversar, pode ser?

Apesar da confusão estampada nas suas caras, eles se sentaram no sofá e ficaram me olhando com expectativa.

⎯ Bom, mãe, pai…

A minha voz embargou e por um segundo achei que não daria conta de falar nada do que eu havia me proposto quando decidi ir até ali.

Limpei a garganta e continuei:

⎯ Quando eu tinha 17 anos eu tive certeza de que eu gostava de meninas, e eu sei que deveria ter tido essa conversa com vocês lá naquela época, mas eu tava confusa e com medo e achei que vocês iriam sofrer menos se não soubessem. Os anos foram passando e eu fui me acomodando porque parecia bem mais fácil viver com esse segredo do que falar a verdade. Mas foi um erro.

“Vocês mereciam saber a verdade e eu merecia viver a minha vida sem ter que me esconder. Não dá pra viver desse jeito. Eu não quero mais viver desse jeito.

“Vocês não precisam aceitar, vocês só precisam saber. Eu sei que é difícil e que vai contra muitas coisas que vocês acreditam. Mas eu não vou mudar. Eu sou assim e vou continuar sendo assim.”

Eu não tinha olhado para os dois enquanto falava porque sabia que não ia conseguir chegar ao fim do meu discurso, então foi só quando terminei que percebi que minha mãe já estava chorando mais uma vez.

Só torcia para que não fosse de tristeza.

 ⎯ Tala, você sempre vai ser nossa filha e nós sempre vamos amar você do jeito que você é ⎯ meu pai disse no mesmo tom carinhoso que ele usava quando eu era criança e me machucava.

Minha mãe se sentou do meu lado e me puxou para um abraço longo, apertado e sacolejante já que ela não parava de chorar.

⎯ Tá tudo bem, minha filha, não faz tanta diferença assim se você se casar com outra moça em vez de um rapaz.

⎯ Não vamos apressar tanto esse lance de casamento — falei e a minha mãe soltou uma risada por entre as lágrimas. — Mas você tem certeza? — perguntei por fim, ainda meio apreensiva.

Era estranho ouvir a minha mãe dizendo aquilo.

⎯ Tenho sim, filha. Inclusive, se você quiser trazer a moça das fotos para nós conhecermos, tá tudo bem.

Ops.

⎯ Sobre isso…  — falei. — Eu falo com vocês depois. Eu preciso ir, tem mais uma pessoa que eu preciso conversar agora.

***

Como Alex não respondia as minhas mensagens, não me restou outra alternativa senão ir pessoalmente.

Por sorte, Becca, a sua tia estava no restaurante e me passou o endereço de Alex. Menos de cinco minutos depois, eu estava parada na frente da porta dela, rezando para que ela estivesse em casa.

Eu sentia as minhas mãos suando quando toquei a campainha.

⎯ Tala? — Alex perguntou quando abriu a porta.

Para ser sincera, eu não pensei muito além desse momento, então fiquei meio sem saber o que fazer.

— Oi — falei.

Como eu era patética. Sério.

Oi? Que coisa mais idiota de se falar.

⎯ Como você descobriu meu endereço? — ela perguntou, parecendo meio desconfiada.

⎯ Sua tia me deu.

— Você quer alguma coisa, Tala? — ela perguntou quando notou que eu ainda estava paralisada na porta dela.

— Sim! Sim… quero falar com você!

Eu era uma psicóloga. Uma profissional. Como, em nome de Deus, eu estava tendo tanta dificuldade para falar.

⎯ Entra aí — Alex disse, dando espaço para eu passar.

O apartamento era grande e antigo, mas a mobília era moderna. Alex se acomodou numa ponta do enorme sofá cinza que ficava em frente à TV e eu me sentei na outra.

Ela usava uma calça jogging e uma camiseta larga e tinha os cabelos úmidos. Estava com a aparência um pouco cansada.

⎯ Você estava trabalhando? — perguntei.

⎯ Uhum, acabei de chegar.

Às vezes ela fazia o turno da madrugada quando precisava cobrir algum outro paramédico, então eu suspeitava que ela ainda não tinha dormido.

⎯ Desculpa aparecer assim — falei. — Mas as coisas não podiam ficar como estavam.

⎯ Tudo bem, a gente precisa mesmo conversar.

Senti uma ponta de esperança. Alex era uma pessoa compreensiva, eu já tinha notado isso pelas nossas conversas no consultório. Então sabia que ela iria pelo menos escutar o que eu tinha para falar.

⎯ Eu não sei nem por onde começar… — falei.

⎯ Pode começar me contando por que a minha ex me mandou uma caixa com fotos de vocês duas.

— Imagino que você tenha ligado os pontos sozinha, mas nós temos a mesma ex.

— Você sabia? Você manipulou a situação para que eu terminasse com ela?

— Sim e claro que não — respondi rapidamente. — Eu só descobri que era a Rachel no dia que você me contou que terminaram e falou o nome dela pela primeira vez. Como eu a conhecia bem, supus que poderiam ser a mesma Rachel e entrei no Instagram dela para confirmar.

— E você aceitou sair comigo para se vingar dela?

— É claro que não! Embora vontade de me vingar não me falte, porque ela mandou uma caixa igual a essa para a minha família, que não sabia sobre a minha sexualidade.

— Espera, o quê?

Ergui os ombros, porque não queria que ela tivesse pena de mim nem nada, mas queria que ela soubesse.

— Tudo bem, agora eles sabem e já está resolvido. Mas foi um pouco traumático para eles.

⎯ Eu sinto muito, Tala.

⎯ Tudo bem, o que eu não sei ainda foi como ela descobriu sobre a gente.

⎯ Eu acho que sei — Alex falou e pegou o celular.

Dois segundos depois, ela me mostrou a tela. Pete tinha postado uma foto nossa no sábado, não aparecia só eu e a Alex, mas nós estávamos nos olhando e sorrindo de um jeito que não deixava muita dúvida.

⎯ Você acha que ela viu?

⎯ É a única explicação.

— Eu achei que ela nem gostasse dos seus amigos — resmunguei. — Stalker!

Alex soltou uma risadinha e senti o meu coração acelerar.

— Então não está tentando se vingar da Rachel? — ela perguntou mais uma vez.

— Não.

Alex se aproximou de mim no sofá, colocando uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.

— E você não está querendo fazer ciúmes nela para vocês voltarem?

— Deus me livre!

Ela abriu um sorriso.

— Bom! — Foi tudo que ela falou antes de me puxar pelo pescoço para um beijo.

Fim.

Este conto foi originalmente publicado na Sociedade da Caixinha Sáfica e é o elo entre dois de nossos romances:
Amor Fati e Tinha Tudo Para Dar Errado.