De Repente, Tudo de Novo
1. Helena
— Você quer ser o responsável pelo meu divórcio, Lúcio? — pergunto.
— O quê? Não…
— Então checa mais uma vez.
— Mas eu já chequei três vezes, Helena.
— Checa de novo!
Lúcio respira fundo e se vira, mas eu não dou bola; contanto que ele cheque de novo, pode bufar o quanto quiser. Espero enquanto ele some pela quarta vez na porta do estoque, atrás do balcão da sorveteria.
Eu me recuso a voltar para casa sem o sorvete que a Pati está com desejo, porque não quero que a nossa filha nasça com cara de cupuaçu.
Essa criança nem nasceu ainda e já sei que vai dar trabalho. Por que ela não poderia estar com vontade de um sabor típico daqui do Sul? Em 35 anos de vida, eu nunca nem provei sorvete de cupuaçu, e ela, aparentemente, já é fã do sorvete mais difícil de encontrar nessa ilha.
Eu sabia que devíamos ter usado o óvulo da Pati. Já estou até vendo que essa criança vai ter a mesma personalidade miserável que eu tinha… bem, tenho.
Tamborilo os dedos sobre o balcão enquanto espero por Lúcio. Dessa vez, ele demora um pouco mais que nas anteriores e, só por essa demora extra, eu sei que nas três primeiras ele não olhou direito. Quando a porta se abre de novo, vejo a suas bochechas ligeiramente vermelhas.
— Eu juro que já tinha olhado tudo três vezes — ele fala de um jeito meio acanhado com as mãos atrás do corpo. — Mas acho que deixei passar esse pote antes.
Ele me mostra um pote de dois litros de sorvete escrito “cupuaçu” no rótulo. Viu? Eu sabia que não podia confiar na palavra dele nas outras vezes.
As minhas irmãs acham que eu sou chata, mas a culpa não é minha que as pessoas não se esforçam. Se ele tivesse procurado direito na primeira vez, eu não precisaria obrigar ele a olhar de novo.
Balanço a cabeça e tiro o cartão de crédito da bolsa antes de anunciar:
— Eu vou levar.
***
Além do sorvete de cupuaçu, peguei também um pote de chocolate e outro de flocos para o Ju e a Juju, porque são os preferidos deles. Pelo menos dois terços dos meus filhos tem gostos mais fáceis de agradar.
Com o calor que faz hoje, esses sorvetes vão derreter em cinco minutos mesmo com o ar-condicionado do carro na potência máxima, então dirijo com certa pressa. Por sorte, é meio da tarde de uma quinta-feira e não tem muito movimento.
Não é comum eu dirigir nesse horário, mas estou de férias há duas semanas. Infelizmente, não por motivo de viagem ou qualquer outra coisa do tipo.
Me dei férias porque, há uns dois meses, Pati teve um sangramento com princípio de aborto e teve que ir para o hospital. Por sorte, Ju e Juju estavam no Luneta naquela semana e não viram nada disso, porque foi apavorante.
Quando chegamos ao hospital, Pati passou por uma série de exames e a sua médica nos garantiu que foi só um susto e que tanto ela quanto o bebê estavam bem, ainda assim, pediu para Pati não fazer muito esforço durante o resto da gestação.
Depois disso, comecei trabalhar de casa para ficar mais com ela, mas, há duas semanas, ela teve muitas contrações, e decidi tirar férias de uma vez, porque alguém tem que ficar de olho nela já que é mais teimosa que uma mula empacada e não aceita que precisa repousar.
Já estou quase chegando em casa quando escuto o meu celular tocar. Atendo pelo painel do carro.
— Que foi, Lara?
— Lena, você pode vir aqui no Grupo hoje?
— Não — respondo simplesmente.
Lara precisa aprender o conceito de férias. E o de se virar sozinha.
— É importante — ela diz em um tom estranho.
— Eu não posso ir agora, senão o sorvete vai derreter.
— Que sorvete? — ela pergunta, confusa.
— O sorvete de cupuaçu que a Pati tá com desejo.
— De cupuaçu?
— Foi o que eu disse.
— E você achou?
— Achei na sorveteria do Lúcio — explico, meio impaciente. — O que você quer, Lara? Eu tô de férias!
Ela não responde imediatamente e fico com a impressão de que ela estava enrolando de propósito para não precisar ir direto ao assunto. Pela primeira vez, começo a pensar que o que quer se seja, talvez seja mesmo importante.
— Eu não tenho certeza ainda… — Lara fala de forma reticente, do jeito que faz sempre que está nervosa. — Mas eu espero que nada demais.
— Se não é nada, por que você precisa de mim?
— É que eu não sei direito o que está acontecendo.
— Se eu for até aí e não for nada, eu juro que bato em você igual eu fazia quando a gente era criança.
Não que eu fosse uma criança violenta ou coisa assim, eu só batia nela com a almofada todas as vezes que ela roubava o controle da TV. Talvez, umas duas vezes, eu tenha jogado também o meu tênis nela. Mas nas duas ela mereceu.
— Por favor, Lena!
O seu tom é sério e apreensivo, por isso, decido não pressionar por telefone.
— Tá, tá, eu passo aí no fim da tarde, pode ser?
— Obrigada.
Desligo o telefone na mesma hora que dou seta para entrar no condomínio. Fico com uma sensação ruim, porque se ela não pode me contar por telefone nem esperar que eu volte a trabalhar, não deve ser coisa boa. De qualquer forma, decido não pensar nisso agora, Lara sempre foi meio dramática. No fim, não deve ser nada demais.
Juca, o porteiro, abre o portão para mim e me cumprimenta com um aceno enquanto sigo na direção da minha casa. Nós moramos em um condomínio fechado de casas, com bastante área verde.
Me mudei para cá algumas semanas antes de buscar os gêmeos para morar comigo, porque eu sabia que o meu apartamento na beira-mar norte não era o lugar certo para duas crianças cheias de energia como os dois, e nunca me arrependi da escolha, porque Ju e Juju amam esse lugar tanto quanto eu. Moramos aqui há três anos, e a Pati há dois. Foram com certeza os melhores anos da minha vida e não nos vejo nos mudando daqui tão cedo.
Estaciono e não tenho tempo nem de desligar o motor antes de Júlio me abordar na porta do carro.
— Eu falei pra ela não ir!
— Quem?
— A mamãe!
— O que aconteceu? — pergunto, já me sentindo nervosa.
— Ela tá lá treinando com a Juju! — ele diz. — A Juju também falou para ela não ir, mas a mamãe disse que não confia na treinadora nova e que queria treinar a Juju ela mesma.
Posso ver na carinha dele que está preocupado. Apesar de ele e Júlia não terem visto a Pati no hospital, eles sabem que ela precisa descansar e que a sua gravidez precisa de certos cuidados.
— Aquela teimosa! — resmungo, esfregando os olhos com uma das mãos.
Pego a sacola de sorvete no banco do passageiro e entrego para o meu filho, que já está quase do meu tamanho.
— Leva esses sorvetes para o freezer, que eu vou buscar a sua mãe pelos cabelos!
Júlio apenas assente e leva a sacola para dentro de casa, e eu vou batendo pé até a quadra de tênis do condomínio.
Eu sei que Pati acha que estamos exagerando, mas a médica foi bem clara quando disse que ela deveria evitar esforços. E treinar tênis sob esse sol de quase 30º graus célsius me parece o oposto de evitar esforço.
Quando chego, ela está ao lado da quadra gritando alguma coisa para Júlia. A treinadora nova pode até não ser tão boa quanto a Pati, mas também não é tão ruim assim. Ela é só um pouco frouxa e pateta… e tem uma voz chata. Mas isso não significa que ela precise de supervisão, até porque a Juju é bastante disciplinada.
Pela cara da minha filha, sei que ela também está preocupada com a Pati, mas não sabe o que fazer, então apenas segue as instruções que recebeu.
— Patrícia Borges Lancellotti, o que diabos você pensa que está fazendo? — pergunto, com os braços cruzados, assim que piso na quadra.
— Amor…
— Eu falei para ela não ficar aqui! — Júlia se justifica.
— Eu sei, meu amor — digo para a minha filha e me viro para minha esposa em busca de explicações.
— Eu só tava… hum… ajudando?
— Já vai ajudar muito se você não cair desmaiada nessa quadra — falo.
— Que exagero, amor.
Caminho até Pati que está com um vestido floral, que deixa bem evidente o tamanho que já está a sua barriga, e o cabelo preso em um rabo de cavalo.
— Eu falei que dava conta sozinha — Francielle, a treinadora, se defende do outro lado da quadra.
— Não falou o suficiente — reclamo. — Você tá dispensada por hoje.
Ela olha o próprio relógio com uma cara confusa, porque ainda faltam uns vinte minutos para acabar o treino, mas eu não estou nem aí. Além do mais, está muito quente para a Juju ficar sob esse sol tantas horas.
— A gente continua terça, Juju — Fran fala para Júlia, então se vira para mim. — Eu realmente falei para ela não ficar aqui.
— Eu sei — respondo Fran sem tirar os olhos de Pati.
Apesar de ser frouxa, ela não tem culpa de a Pati ser tão insuportavelmente teimosa.
— Bom fim de semana para vocês — Francielle fala.
— Pra você também, Fran — Pati fala com o seu tradicional bom humor, mas hoje isso não vai colar comigo.
Fran caminha até o banco para arrumar as suas coisas, e a Juju faz o mesmo. Eu continuo de braços cruzados, esperando alguma explicação plausível da Pati, que me olha com a cara mais inocente do mundo.
— Você tá exagerando, amor — ela diz mais uma vez, me puxando pela cintura. — Eu tô bem.
A contragosto, descruzo os braços. Sinto a sua barriga contra o meu abdômen e, quando dou por mim, já estou com as mãos na sua cintura.
Mas se ela acha que vou esquecer isso assim só porque ela está com esse sorriso iluminado e os olhos mais verdes que o normal, ela está enganada.
— Você precisa repousar — insisto. — Você quer parar no hospital de novo?
— Se eu não estivesse bem, eu não estaria aqui, eu juro — ela diz em um tom gentil. — Não tem nada demais, eu só tava observando o treino e dando algumas dicas.
— Mas é perigoso ficar nesse sol. Está muito quente hoje.
Estamos no começo de março, mas o clima ainda está bastante quente e abafado. Mesmo Florianópolis sendo uma ilha, hoje, tem pouco vento e muita umidade no ar, o que faz a sensação térmica ser a mesma de estar em um forno ligado dentro de um vulcão em erupção. No inferno!
— Eu nem tava jogando, amor — ela argumenta. — A Serena Williams ganhou um Grand Slam grávida…
— Eu digo isso com todo o amor que sinto por você, linda, mas você não é a Serena Williams. Além do mais, eu tenho certeza de que ela seria a primeira a respeitar as ordens médicas, porque ela é disciplinada… diferente de você.
— Também não precisa jogar na cara — ela reclama, mas vejo uma risadinha escapar. Quando percebo, também já estou rindo.
Que ódio!
Odeio como ela sempre consegue escapar fácil dos meus sermões. Mesmo quando sei que estou certa.
— Eu trouxe o sorvete de cupuaçu para essa terrorista — falo, colocando a mão sobre a barriga de Pati, que já está bem perceptível agora que ela entrou na vigésima sétima semana.
— Hmm, eu tô morrendo de vontade.
— Então vamos sair desse sol — digo, escorregando a mão pela sua cintura até encontrar a sua mão esquerda e entrelaçar os nossos dedos. Em seguida, me viro para a nossa filha. — Vem Juju, eu trouxe sorvete.
— De que? — ela pergunta, colocando a bolsa com as raquetes nas suas costas e correndo até nós.
— De cupuaçu.
Ela franze as sobrancelhas e me olha com certa decepção.
— De flocos não?
Não consigo conter o riso com a carinha de pesar dela. Ela e o Júlio não gostam muito de provar coisas novas, e tenho que admitir que não tenho muita moral, porque, apesar de tentar incentivá-los um pouco, eles sabem que eu também não gosto. Ainda bem que a Pati faz esse papel, senão nós três iríamos comer comida do Orso todos os dias.
— Claro que sim — respondo, puxando Júlia pelos ombros para dar um beijo na sua bochecha.
As sobrancelhas franzidas afrouxam e um sorriso largo surge no seu rosto. Retribuo o sorriso dela e caminhamos nós três lado a lado até a casa.
— Eu juro que falei para ela ficar em casa — Juju fala para mim, sobre a Pati.
— Eu sei — respondo. — Ela que é teimosa e desmiolada.
— Ei! Eu tô aqui — Pati reclama.
— Ela tá certa, mãe — Juju fala para a Pati.
— Você tá do lado de quem, menina? — Pati pergunta.
— Do seu, ué! A gente quer que você fique bem! — Júlia responde, abrindo um sorriso, mas Pati franze o nariz, desconfiada.
— Você lembra aquela vez que ela surfou no meio de um ciclone e quase se matou? — pergunto para Júlia.
— Lembro — Juju responde. — Foi a primeira vez que ela dormiu aqui em casa.
Não consigo evitar um sorriso com essa memória, embora até hoje eu esteja zangada com a Pati por causa daquele acidente.
— Viu? Nem foi tão ruim assim, teve o lado bom também — Pati diz com uma cara inocente.
— E é por essas e outras que eu não posso te deixar sozinha nem para ir comprar sorvete — comento e escuto Pati e Juju soltarem uma risada.
Assim que entramos em casa, o Pudim vem correndo na minha direção e quase me derruba.
Cristo!
Esse cachorro não sabe o tamanho que tem. Ele ainda acha que é um filhote e toda vez que chego em casa, ele quase me desmonta, em busca de um afago.
— Pudim! — advirto. — Chega!
Ele continua balançando o rabo e tentando lamber a minha cara.
— Agora chega! — falo mais firme para ele.
Pudim para e se senta na minha frente, com a língua pendurada e o rabo abanando. Ele sempre me olha com essa cara boba e inocente, como se eu tivesse esquecido que ele comeu as nossas alianças no dia do nosso casamento.
Juju faz um carinho nele antes de disparar para a cozinha atrás do sorvete de flocos.
— Eu devia ter doado esse cachorro quando era filhote — reclamo.
— E quem iria te encher de beijos quando você chegasse em casa? — Pati pergunta, fazendo um carinho na cabeça canina igual Juju há pouco.
— Você, de preferência.
Ela desvia a atenção do cachorro para mim e me lança um sorrisinho maroto.
— Bom, uma coisa não impede a outra — ela fala enquanto me puxa pela cintura.
— Não adianta se chegar, porque eu ainda tô brava com você.
— Eu já pedi desculpas — ela sussurra, com a boca perto da minha, e sinto o meu corpo amolecendo.
— Não pediu não!
O cheiro do perfume misturado ao característico cheiro de maresia do cabelo dela fazem eu me desconcentrar e quase esqueço o motivo de eu estar zangada. Quase.
— Tá bom — ela sussurra, com os lábios quase grudados aos meus. — Me desculpa! Eu prometo que vou descansar até a Lolô nascer.
— Promete mesmo? — pergunto em um tom um pouco reticente. Mas eu só quero que ela fique bem e pare de se colocar em risco.
— Prometo — ela responde de maneira mais séria, se afastando ligeiramente. Acho que ela percebe que eu estava preocupada de verdade. — Desculpa te deixar assim!
Apenas balanço a cabeça de forma afirmativa, e ela leva as duas mãos às minhas bochechas.
— Eu vou me cuidar, eu prometo — ela diz antes de se aproximar ainda mais para me dar um beijo.
É um beijo carinhoso, como se fosse um pedido de desculpas, e sinto a minha ansiedade diminuindo aos poucos.
Não estou assim só porque ela estava na quadra hoje, estou assim porque ainda não me recuperei do susto que levamos quando ela foi hospitalizada. Foi um flashback do dia que ela sofreu o acidente surfando, só que dessa vez não era só a vida dela que estava em risco. A do bebê também estava, o que tornava tudo duas vezes pior.
Eu nem sei o que eu teria feito se tivesse acontecido algo com ela ou com a criança e, para ser sincera, nem quero pensar nisso, então apenas retribuo o beijo e tento me lembrar que tanto Pati quanto a Lolô estão bem…
Espera, Lolô?
— Ei! — falo, me afastando apenas o suficiente para poder olhar para ela. — A gente ainda não decidiu sobre o nome.
Pati sugeriu que fosse Heloísa, mas eu não me lembro de ter concordado.
— Mas Heloísa é tão lindo! — Pati comenta. — E combina com Helena.
— Esse é o problema, amor.
— Não entendi.
— Essa criança nem nasceu ainda e já é parecida demais comigo.
— E qual o problema?
— Ué, você quer mesmo uma filha com a minha personalidade?
— Claro que quero! — ela diz de forma honesta, segurando as minhas bochechas entre as suas mãos, e é em momentos como esse que eu percebo que ela me ama mesmo, porque francamente.
***
Estamos todos na varanda da piscina, eu e Pati estamos sentadas à mesa enquanto ela devora a segunda tigela de sorvete de cupuaçu.
Guga está no seu colo e ela faz carinho nas orelhas dele enquanto come o sorvete com tanta vontade que fico até curiosa para saber que sabor ele tem, por isso, levo a minha colher até a tigela dela para provar. Para ser sincera, não vou com muita boa vontade, porque para mim esse sorvete tem cheiro de acetona, mas provo mesmo assim.
A primeira coisa que noto é que ele é bem azedinho e lembra um pouco sorvete de abacaxi, mas depois percebo que é mais suave e refrescante do que imaginei. Até que não é tão ruim… pensando bem, entendo porque Lolô queria esse sabor. Ele combina com o clima de hoje mesmo.
Pati me encara com expectativa, como que esperando a minha reação. Ela sabe que eu não sou a pessoa mais aventureira do mundo com comida, então deve estar esperando meu veredito.
— Até que é gostoso — admito antes de dar mais uma colherada.
— Eu te disse!
— Mas ainda prefiro flocos.
— Eu sei, amor — ela diz com uma risadinha e se aproxima para me dar um beijo. Não sei exatamente porque ganho um beijo, mas eu que não vou reclamar.
Ju e Juju também se empanturram de sorvete.
Júlio está em uma das redes com Pudim ao seu lado, e Juju está sentada na borda da piscina, com os pés na água.
Passar a tarde com eles tem sido uma das minhas partes preferidas de ter tirado férias. Principalmente nas terças e quintas, que a Juju tem treino de tênis aqui no condomínio mesmo e o Ju fica em casa a tarde toda. Sempre que Júlia acaba o treino, nós fazemos alguma coisa nós quatro (mais o Guga e o Pudim, porque eu nunca consigo me livrar deles).
Como a Pati tem ordens médicas para repousar, fazemos coisas tranquilas como jogar batalha naval ou ver um filme e, às vezes, como hoje, ficamos apenas aqui na piscina tomando sorvete e jogando conversa fora. Para mim, não faz muita diferença o que fazemos e sempre deixo que eles escolham, porque a parte mais importante é estarmos juntos.
— A mãe de vocês concordou com o nome — Pati fala com um largo sorriso.
— Você já falou para eles? — pergunto.
Pati encolhe os ombros e abre um sorrisinho inocente.
— Eu não consegui guardar segredo — ela se justifica. — E foram eles que me perguntaram.
Tento revirar os olhos, mas acabo soltando uma risada em vez disso, porque eu sei que ela não consegue esconder nada deles. Ela quase estragou a festa surpresa que preparamos para o aniversário de treze anos, porque não conseguia desviar do tema quando eles falavam que o dia estava chegando.
— Eu achei lindo! — Júlia diz para mim.
— Eu também gostei — Júlio afirma. — E a mamãe disse que a gente pode chamar de Lolô.
Não sei qual a obsessão dessa família com apelidos de sílabas repetidas, já temos a Juju e a Lili. E agora uma Lolô? Mas enfim, se a minha família gosta…
— Heloísa Lancellotti — falo em voz alta, para testar a sonoridade. — Até que soa bem.
— Eu sabia que você iria acabar se apegando — Pati diz com aquele sorriso iluminado.
— De qualquer forma, espero que a Lolô se pareça com você! — admito.
— Você é um amor! — ela fala, levando a mão ao meu cabelo e fazendo um cafuné.
Mas antes que eu consiga responder, escuto meu celular tocando.
Que saco! Nem de férias eu tenho paz.
— É a Lara — falo, pegando o telefone. — Esqueci dela! Tinha prometido passar lá no Grupo Lancellotti hoje. Alô?
— Lena, cadê você?
— Eu já vou, eu tinha esquecido…
— Vem pra cá agora — Lara fala, ainda mais séria que antes. — A Mila e a Lu já estão aqui.
— O que elas estão fazendo aí?
— Tivemos um problema fiscal e eu tive que conversar com o Armando. Ele convocou uma reunião com nós quatro para explicar melhor.
— Problema fiscal?
— Alguns auditores da Receita Federal bateram aqui hoje e parece que teve algum mal-entendido.
— Eu já tô indo.
Me levanto antes mesmo de desligar o celular.
— O que aconteceu, amor? — Pati me pergunta.
— Não sei, mas a Lara falou que alguns auditores da Receita Federal estiveram lá hoje — falo, tentando assimilar o que isso significa. — Enfim, a Luísa e a Mila estão lá e querem que eu vá também.
Vejo a preocupação cruzar o rosto da Pati.
— Não se preocupa, linda, não deve ser nada. A Lara só deve ter feito alguma confusão — falo e me abaixo para plantar um beijo na sua boca.
Ela assente com a cabeça, mas sei que ela está preocupada.
— Eu já volto — afirmo e dou mais um beijo nela, só para ela ter certeza de que está tudo bem, em seguida beijo a sua barriga.
Antes de sair, deixo um beijo também nas testas dos meus filhos e até faço um carinho na cabeça do Guga e do Pudim.
Quando entro no carro só consigo torcer para que a Lara não tenha feito nenhuma cagada bem no meio das minhas férias.
2. Helena
— Como é que é?
— O quê?
— Isso é uma piada?
— Você tá me zuando?
Estamos todas na sala de reunião do Grupo Lancellotti esperando Armando explicar o que diabos está acontecendo. Ele nos olha de maneira desconfortável e, a não ser que ele tenha um senso de humor muito merda, acredito que ele não esteja brincando.
Mas isso não pode estar acontecendo!
— Infelizmente, todos os seus bens serão retidos enquanto a empresa estiver sendo investigada.
— Isso é um absurdo! — exclamo.
— Mas eu não entendo… — Mila fala, parecendo confusa. — Como?
— Isso é culpa da Lara — acuso.
— Como diabos pode ser minha culpa se você que é a presidente? — Lara revida.
— Você que é o jurídico dessa empresa.
— Eu sou o jurídico, não o administrativo!
— Nós estamos enfrentando um problema bem jurídico nesse momento, Lara.
— Pera aí, vocês — Luísa se mete, batendo as mãos na mesa. — Deixa o Armando explicar!
Todas nos viramos para Armando, esperando o que ele vai dizer.
— Não é uma questão nem jurídica nem administrativa — ele fala em um tom grave. — O problema é bem mais complexo, trata-se de uma acusação de desvio de dinheiro e sonegação de impostos.
Mila e Luísa se viram imediatamente para mim, como se a culpa disso fosse minha. A audácia!
— Vocês tão achando que eu tenho alguma coisa a ver com isso? — pergunto, irritada.
Luísa dá de ombros antes de falar:
— De nós, você é que tem mais cara de que faria uma coisa dessas.
— Você tem que admitir que é verdade, Lena — Mila concorda.
— Vão se catar! Eu não preciso desviar dinheiro de ninguém, porque, diferente de vocês duas, eu trabalho.
— Pera lá! — Mila ergue as mãos. — Eu trabalho no Luneta.
— Eu também trabalho — Luísa se apressa em dizer.
— Tocar na Bica da Larica não é emprego, Luísa — acuso. — Todo mundo sabe que o que paga as suas contas e mordomias é a mesada gordinha que cai na conta todo mês.
— Não é uma mesada — Luísa se defende. — Trabalhando aqui ou não os dividendos são meus por direito.
— Bom, pelo jeito eram — comento. — Porque agora estão bloqueados.
— Espera! — Mila exclama. — Mas se não foi você, quem foi?
Todas nos viramos para a Lara, que nos olha confusa por um segundo.
— Não fui eu! — ela se apressa em falar.
— Tem certeza? — pergunto, estreitando os olhos.
— É claro que tenho! Por que eu faria isso?
— Sei lá, pra fugir e não precisar mais aguentar ordens da Lena?
— Vai pra merda, Luísa!
— Sei lá, só tô tentando achar uma explicação — Luísa diz, confusa com a situação. — Por que isso não tá fazendo muito sentido.
— Não mesmo — Mila concorda.
— Mas se não é nenhuma de nós, quem diabos está por trás disso? — pergunto.
Mais uma vez, todas nos viramos em sincronia, agora, para Armando. Ele está com uma das mãos no topo do nariz, claramente de saco cheio da gente, mas eu não ligo, nós o pagamos muitíssimo bem para ele nos aguentar sem reclamar.
Quando ele percebe que finalmente paramos de discutir, explica:
— A Receita Federal recebeu uma denúncia de que o Grupo Lancellotti poderia estar envolvido em um grande esquema de fraude fiscal…
— Denúncia? — Luísa pergunta. — Quem foi o filho da puta que fez uma acusação ridícula dessas?
— Foi uma denúncia anônima — Armando responde.
— Anônima?! — Lara pergunta de forma retórica.
— Sim — Armando confirma mesmo assim. — E se vocês querem saber, foi uma denúncia bem detalhada, que contém desde transações financeiras para paraísos fiscais até uma lista de falsos fornecedores.
— Mas é óbvio que essa denúncia é falsa — falo. — Por que os nossos bens estão sendo bloqueados?
— Na verdade… — Armando começa e não gosto do seu tom. — Os auditores da receita estiveram aqui hoje e encontraram várias notas frias, além de um histórico de transações feitas para as Ilhas Cayman.
— Como é? — pergunto, sem conseguir assimilar direito o que está acontecendo. — Então tem mesmo alguém nos roubando?
— É possível — Armando confirma.
— Se estamos sendo roubadas, por que os nossos bens é que foram bloqueados?
— Até que todas as denúncias sejam apuradas, os sócios são os principais suspeitos — ele me explica. — Sinto muito.
— Isso não vai ficar assim — falo, batendo o punho cerrado sobre a mesa. — Eu vou achar quem está desviando dinheiro da empresa e fazer esse desgraçado devolver até o último centavo!
— E como a gente vai fazer isso? — Lara pergunta.
— Vamos contratar uma empresa de auditoria particular e fazer a nossa própria investigação — explico.
— Acho que a gente não tem grana pra isso, Lena — Mila me lembra.
— O que exatamente será bloqueado? — pergunto ao Armando.
— Tudo — ele diz. — Contas bancárias, cartões e todos os seus bens, o que significa que não poderão vender propriedades ou veículos nesse período.
— Por que toda vez que a gente se reúne com você é para falar que não podemos tocar no nosso dinheiro? — Luísa pergunta para Armando, se referindo a vez que a nossa mãe condicionou nossa herança a um mês de trabalho no Luneta.
— Pelo menos a mamãe tinha deixado instruções do que tínhamos que fazer para poder recuperar a herança — Lara comenta. — Dessa vez a gente não sabe nem por onde começar.
— Bom, se não podemos pagar uma investigação particular, vamos investigar nós mesmas — falo.
Está para nascer o filho da puta que vai passar a perna em Helena Lancellotti e sair impune!
— Eu tô dentro — Luísa é a primeira a falar.
— Eu também — Mila concorda.
— Vamos encontrar esse patife — Lara completa.
— No que precisarem do meu auxílio, estarei disponível — Armando afirma.
— Você sabe que não podemos pagar os seus honorários enquanto nosso dinheiro estiver bloqueado, não é? — Lara pergunta.
— Estarei disponível mesmo assim — ele garante. — Eu sei que vocês quatro não estão envolvidas nesse caso e gostaria de ajudar de alguma forma. E acredito que o meu neto também.
Ele está falando do Vicente, o namorado da Lara, que também é advogado na firma do Armando.
Lara apenas assente com um sorriso agradecido.
— Obrigada — Mila fala.
— Mas assim que a gente recuperar o controle, a gente acerta tudo com vocês — garanto.
— Bom, meu primeiro conselho é investigar as notas frias — Armando diz. — Elas podem levar a alguém ou a alguma pista.
— É isso que vamos fazer!
***
Apesar de sabermos mais ou menos por onde começar, já está tarde e decidimos ir para a casa da Lara tentar traçar um plano mais sólido. Mila liga para Murilo para avisar que vai dormir na Lara, e eu ligo para Pati para avisar que vou demorar um pouco mais do que tinha previsto.
— Mas tá tudo bem, amor? — ela pergunta em um tom preocupado.
— Vai ficar — asseguro, porque não quero que ela se estresse no atual estado. — Assim que der, eu vou para casa.
— Não se preocupa com a gente — ela diz. — A Juju já convocou uma noite de filmes aqui no nosso quarto. Ela tá fazendo pipoca e o Ju está aqui do meu lado escolhendo filme.
— Eu preferia estar aí com vocês — falo, ainda irritada com toda essa situação.
— Eu sei! — Pati responde em um tom gentil. — Mas, pelo jeito, aconteceu alguma coisa séria e as suas irmãs precisam de você.
— Quando eu voltar, eu te explico tudo — prometo. — Diz que eu mandei um beijo pros dois.
— Pro Pudim e pro Guga? — ela pergunta e sei que está sorrindo. Pensar nela sorrindo faz minha tensão diminuir um pouco.
— Pros nossos filhos! — enfatizo, mas solto uma risadinha.
— Pode deixar — ela diz. — Te amo!
— Eu também te amo.
— Beijo, mãe! — Escuto a voz do Júlio ao fundo.
— Um beijo! — respondo antes de desligar, me sentindo um pouco mais calma do que antes de falar com ela.
Coloco o telefone na bolsa e caminho até a sala. Luísa está jogada no sofá escrevendo alguma coisa no celular. Imagino que seja uma mensagem para Sofia.
Mila está na poltrona ao lado do sofá, com o cotovelo apoiado no braço do móvel e o queixo apoiado na mão e um semblante preocupado. Se a Mila está preocupada é porque estamos mesmo lascadas.
A única que ainda não está na sala é a Lara, e imagino que esteja com o Lucas e a Lili.
Me sento no mesmo sofá em que Luísa está refastelada, no único espaço que sobrou.
— Eu ia sugerir pedirmos comida — Luísa fala. — Mas acho que a gente não tem grana pra isso.
— Como vamos viver assim? — Mila pergunta, virando para a gente. — Tudo que eu tenho tá no banco. Eu não tenho uma mala de dinheiro escondida para esse tipo de ocasião.
— Tô começando a achar que a gente deveria ter — Luísa fala. — É a segunda vez que isso acontece.
Mila apenas assente com a cabeça e um “uhum”.
— Eu tenho alguns dólares e euros lá em casa, vou trocar — falo. — Também tenho pesos argentinos, mas essa merda não vale nada.
— E você tem o Murilo, pelo menos — Luísa fala para a Mila. — Vocês são casados e ele tem dinheiro. Eu não posso pedir pra Sofia me sustentar, a gente nem ao menos mora juntas.
— Eu já te disse para deixar de ser bundona e convidar ela para morar com você — Mila fala.
— Você sabe que eu já convidei, ela que não quer!
— É claro que ela quer, Lu.
— Então por que não aceitou, Mi?
— Porque ela espera que você…
— Puta que pariu! — exclamo, batendo com a mão na testa ao lembrar de algo muito, muito importante.
— O quê? — Mila e Luísa perguntam juntas.
— Eu e a Pati — falo. — Nós nos casamos com união total de bens!
— E?
— E que a conta dela, provavelmente, foi bloqueada também.
— Será? — Mila questiona.
— O que é dela é meu, e o que é meu está bloqueado — falo, levando as mãos à testa.
Isso é um pesadelo.
— Ainda bem que eu e o Mu não nos casamos no papel — Mila comenta, soando aliviada.
Mila e Murilo se casaram há uns dois anos, mas como esses dois bicho-grilo não fazem nada da forma convencional, só fizeram uma cerimônia no Luneta, mas nunca se casaram no civil.
— Pra ser sincera, nunca entendi por que você fez isso — Luísa fala para mim.
— Me casar? — pergunto, confusa, me virando para Luísa. — Porque eu amo a Pati, ué.
— Casar com união total de bens — Luísa explica. — A mamãe sempre nos falou para não fazer isso.
Ela sempre falou isso mesmo, mas sei que ela se referia a interesseiros como o Felipe, o ex-marido da Lara, não a um anjo como a Pati.
— Porque a Pati estava toda insegura sobre esse tema e dizia que não queria que eu achasse que ela estava interessada no meu dinheiro…
— Aí você dividiu todo o seu dinheiro com ela — Luísa completa, com uma risada.
— Foi — confirmo, dando de ombros. — Queria que ela soubesse que eu confio nela.
Eu nunca fui tão dinheirista como as minhas irmãs acham e não queria que dinheiro fosse um problema no meu casamento. Não vejo qual a questão aqui.
— Quem te viu, quem te vê, Lena! — Luísa comenta, mas tem um sorriso.
— Infelizmente, o seu gesto de amor virou um problemão agora — Mila acrescenta.
— Eu vou meter quem quer que tenha feito isso na cadeia — falo em tom de promessa. — E se acontecer alguma coisa com a Pati ou com a Lolô por causa desse estresse, eu juro que mato essa pessoa.
— Não vai acontecer nada com elas… espera! Lolô? — Mila pergunta, animada. — Vocês escolheram o nome?
— A Pati e os gêmeos gostaram de Heloísa — falo.
— Que lindo, Lena! — Luísa fala, me cutucando com o pé, mania que tem desde criança e que eu odeio. — Combina com o nome da dinda!
— Quem disse que você vai ser a dinda? — Mila pergunta. — Eu quero ser a dinda.
— Você escolheu a Lara para ser a madrinha da Luna — Luísa acusa. — Por que você acha que a Lena vai escolher você? Parece que não sabe como ela é rancorosa.
— Eu não sou rancorosa.
— É claro que é — Luísa e Mila falam em uníssono.
A nossa família nunca foi muito católica e, tirando o Lucas e a Alicia, nenhum dos nossos filhos foram batizados na igreja. Ainda assim, todos têm uma madrinha extraoficial. Eu sou a madrinha do Lucas, a Mila é a madrinha da Alicia e da Júlia e a Luísa, do Júlio.
— A Lara era a mais preparada para ser madrinha naquela época — Mila justifica.
— Ah, me desculpa se eu não estava à altura da sua filha — Luísa comenta com sarcasmo.
— Do que você tá reclamando, você é a madrinha do Júlio! — Mila revida.
— E você é madrinha da Juju e da Lili. Já não está bom?
— Não!
— Já chega, vocês duas — falo, levando as mãos às têmporas. — A gente já escolheu, vai ser a Lara.
— Ah, não acredito! — Mila exclama.
— Que saco! — Luísa bufa.
— Eu o quê? — Escuto a voz da Lara e me viro a tempo de ver ela entrando na sala com uma tábua de frios e uma garrafa de Pinot Grigio.
Aceito a taça de vinho e pego um pedaço de queijo Gouda e algumas nozes pecã.
Por algum motivo, me lembro do dia em que nos reunimos depois do velório da minha mãe, no apartamento em que Lara morava no centro. Aquela foi a primeira vez em muito anos que nos reunimos e, hoje, parece até estranho pensar no pouco que nos víamos naquela época.
— Você vai ser a madrinha da Lolô — Mila fala, ainda emburrada.
— Lolô? — Lara pergunta, sorrindo.
— É o nome oficial da Heleninha Júnior — Luísa explica. — Heloísa.
— Que lindo, Lena! — Lara fala e deixa a tábua de frios em cima da mesa de centro.
— Agora vocês podem parar de chamar ela de Heleninha Junior — comento.
— Mas eu gostava — Luísa diz meio desapontada.
— Combinava tanto — Mila acrescenta.
Apenas solto uma risada e balanço a cabeça.
— Esse é um convite oficial? — Lara pergunta.
— Se você quiser — falo. — A Pati quer que o Pepa seja o padrinho, e eu escolhi você para madrinha.
— Claro que quero! — ela responde, estendendo a sua taça de vinho para eu brindar.
— A gente pode brindar também ou até disso você vai nos privar? — Luísa pergunta, em tom de brincadeira.
— Vem — respondo apenas, e Mila e Luísa se juntam ao brinde.
— Pelo menos uma coisa boa no meio desse caos — Lara fala, nos lembrando o motivo de estarmos todas aqui.
— As coisas boas continuam acontecendo em qualquer situação, Lara — Mila fala, soando bem mais como ela mesma agora.
— A gente vai sair dessa — Luísa comenta, de forma otimista.
— Essa não é a primeira vez que tentam nos passar a perna — falo, me lembrando do caso que envolveu um dos diretores do Grupo Lancellotti.
— Eu lembro — Mila fala. — A nossa cara saia nos jornais toda semana!
Na época, o caso foi um escândalo público . Algo que eu espero que não se repita dessa vez.
— Nossa, eu lembro que a mamãe tava possessa! — Lara relembra.
— Eu não lembro direito desse rolo aí — Luísa diz.
É engraçado como a Luísa lembra tão pouco dessa fase das nossas vidas. Tem pelo menos uns três anos, depois da morte do nosso pai, que parecem ter sumido da sua memória. Eu acho que ela ficou traumatizada e apagou boa parte dos acontecimentos daquela época. Além disso, ela é bem mais nova que a gente. Eu tenho 35, a Mila acabou de fazer 34 e a Lara tem 31. Mas a Lu tem só 25, então, além do trauma, tem muita coisa que ela não se lembra porque era muito criança.
— Tinha sido uma acusação parecida com essa — Lara conta para a Luísa. — Mas não lembro de terem bloqueado os nossos bens.
— Não bloquearam, porque a mamãe não era uma das suspeitas. Na verdade, foi ela que percebeu o desfalque — explico. — Tinha sido um dos membros da diretoria que estava desviando dinheiro dos programas sociais.
— A mamãe odiava aquele cara — Mila fala.
— Ela nunca confiou nele — digo. — Eu me lembro dela falando que ele não era flor que se cheire desde muito antes desse caso.
— Você já trabalhava na empresa, Lena? — Luísa pergunta.
— Já — falo. — Foi uns dois anos depois da morte do papai.
— Dessa vez, deve ser alguém tão baixo quanto o Ivo era — Mila fala, se referindo ao cara que fez o caixa-dois na época.
— E como a gente vai descobrir? — Luísa pergunta.
— Eu acho que a gente tem que se dividir — sugiro. — Cada uma de nós cobre uma frente.
— Concordo — Lara diz.
— E como a gente divide? — Luísa pergunta.
— Eu fico com a parte jurídica — Lara anuncia. — Vou investigar as empresas que estão envolvidas nessas notas frias e vou checar todos os contratos com fornecedores.
— Eu vou ficar com a parte operacional — digo. — Se estão desviando dinheiro, temos que descobrir quanto foi desviado e há quanto tempo isso está acontecendo, e o mais importante: como não percebemos.
— Eu posso ficar responsável pelo departamento pessoal da investigação — Mila comenta.
— Departamento pessoal? — Lara questiona.
— Alguém vai ter que falar com os funcionários, verificar antecedentes, ler as fichas, essas coisas — Mila explica. — Melhor não ser vocês duas.
— A Mila tem razão — concordo. — Melhor ser alguém que eles não veem todos os dias.
— E eu? — Luísa pergunta.
— Você é a melhor de nós em tecnologia — Lara responde. — Você deveria trabalhar com o pessoal do TI e tentar descobrir alguma coisa sobre essas contas em paraísos fiscais. Porque, de tudo, isso é o que menos faz sentido até agora.
— Beleza!
— Acho que temos um plano — falo.
***
Quando chego em casa, já passa das onze da noite.
Está tudo silencioso e escuro e imagino que já estejam todos dormindo. Ju e Juju têm aula amanhã cedo, e a Pati anda bem mais sonolenta desde a gravidez. Por isso, tiro o sapato para não fazer barulho e acordar eles.
Checo o quarto da Júlia, que é o primeiro do corredor, mas a sua cama está vazia e intocada, em seguida checo o quarto do Júlio e vejo que ele também não está na cama. Esse mistério é bem mais fácil de desvendar do que o do Grupo Lancellotti e sei que, se eles não estão nos seus quartos, só podem estar em um lugar.
Abro a porta do meu quarto devagar, porque não sei se eles estão acordados, e quando vejo a cena, sinto o meu coração se espremer em uma mistura de amor e preocupação.
Pati está na extremidade esquerda da cama, dormindo de lado. Júlia está na sua frente com a mão sobre a barriga da Pati, e Júlio está ao lado da irmã, dormindo abraçado com o Guga. Pudim também está na cama, dormindo aos pés da Júlia.
Eles estão iluminados apenas pela tela da televisão, que está mostrando o catálogo do serviço de streaming que eles estavam usando. Na tela, vejo que eles assistiram ao filme Laços, da turma da Mônica.
De tudo, a minha família é o que mais me preocupa nessa história. Eu não adotei os meus filhos para deixá-los passar qualquer privação, nem me casei para deixar a minha esposa estressada por causa de dinheiro no meio de uma gravidez de risco.
Eu sei que em algum momento vamos resolver esse problema, mas não quero que a vida deles seja afetada enquanto isso não acontece.
Desligo a televisão e vou em silêncio até o banheiro. Tomo um banho com calma enquanto tento pensar em soluções imediatas para o nosso problema financeiro. Decido que, em últimos casos, posso vender alguma obra de arte ou penhorar alguma joia para cobrir as despesas até o dinheiro ser liberado.
Coloco um pijama e tento achar um espacinho na cama para mim. Ainda bem que essa cama é king size, porque hoje está superlotada. Me deito ao lado do Júlio, tentando não acordar ninguém, mas quando percebo, os olhos verdes da Pati estão em mim.
— Você voltou — ela fala em um sussurro.
— Voltei — respondo no mesmo tom.
Ela apenas sorri antes de voltar a dormir. Tento fazer o mesmo.
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